Edição | 07 Agosto 2017
Ernesto Laclau e a “razão populista”
Carlos A. Gadea | Edição: João Vitor Santos
“A ‘razão populista’ pareceu concretizar a promessa de abrir, para muitos, uma nova frente de debate e de prática política após a desorientação provocada pelo declínio do marxismo e a sua capacidade de mobilização”, escreve Carlos Gadea, ao analisar a obra de Ernesto Laclau.
Em artigo, o professor ainda destaca que “por outro lado, também é possível considerar que a versão de hegemonia de Laclau teve uma forte influência no desenvolvimento de certos Estudos Culturais, possibilitando-se perceber uma íntima relação entre os Estudos Culturais e o populismo. Povo e cultura popular fariam parte da crítica cultural e do projeto dos Estudos Culturais, devendo muito a Laclau e a sua ‘razão populista’ algumas das noções analíticas chaves para o seu posterior desenvolvimento”.
O professor apresentará e debaterá a obra de Laclau no dia 05 de setembro, no Instituto Humanitas Unisinos - IHU - Campus Unisinos São Leopoldo. Saiba mais sobre o evento.
Carlos A. Gadea professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unisinos. Pós-doutorado pela Universidade de Miami (Centro de Estudos Latino-americanos). Doutor em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Recentemente foi professor visitante na Universidade de Leipzig (Centro de Estudos Ibero-americanos), Alemanha. Entre suas obras publicadas estão Realidade juvenil e violência intersubjetiva em bairros de Porto Alegre. Contextos, situações e perspectivas (Porto Alegre: Cirkula, 2015) e Negritude e pós-africanidade: críticas das relações raciais contemporâneas (Porto Alegre: Sulina, 2013).
Eis o artigo.
O principal interesse de Ernesto Laclau em A Razão Populista foi elaborar uma abordagem alternativa para a compreensão do fenômeno do populismo. Reduzi-lo a uma mera ideologia, ao simples produto do desenvolvimento irracional de certa retórica e prática política ou a um fenômeno sociocultural estreitamente identificado com a liderança carismática de um líder não contempla, para Laclau, a realidade ou situação social que, na realidade, o populismo expressa. O populismo seria muito mais do que uma mera série de adjetivações negativas (irracional, indefinível etc.) sobre um determinado cenário e processo político. Para Laclau, a compreensão desse fenômeno tinha recaído, equivocadamente, na análise do “conteúdo social” que expressava (interesses de classe, ou outros interesses), permanecendo a incógnita com relação aos motivos pelos quais essa forma de expressão política e social se tornava “necessária” em determinado contexto histórico e cultural. A respeito, ele se perguntaria: por qual motivo algumas alternativas ou objetivos políticos conseguem se expressar, unicamente, por meios populistas? “(...) o populismo, mais do que uma tosca operação política e ideológica, não seria um ato performático dotado de racionalidade própria, isto é, em determinadas situações a vagueza (da sua definição) não seria precondição para a construção de significados políticos relevantes?” (Laclau, 2013 [2005]: 53).
A instigante obra de Ernesto Laclau intitulada A razão populista não pode ser entendida, unicamente, como uma reflexão a mais em torno do fenômeno sociopolítico conhecido como populismo, aquele fenômeno muito bem enraizado no senso comum. Tratar-se-ia, muito mais, de uma inquietação teórica que sugere invocar o histórico fenômeno do populismo como uma expressão social que se constitui na dimensão precisa da política, no “momento político” por excelência, uma espécie de “instância” de constituição de “novas identidades políticas” que emergem, eventualmente, nas recentes democracias modernas.
E como essas identidades se expressariam? Claramente inserido em certa tradição analítica vinculada ao pós-estruturalismo, para Laclau as identidades políticas não preexistiriam em torno a determinantes estruturais (como as classes sociais), senão que se materializariam através de uma “construção discursiva” contingente, em torno a uma série de experiências sociais e políticas que terminariam elaborando uma representação da sociedade; experiências que permitiriam articular-se na figura de um “sujeito popular”, na figura do “povo”.
Evidentemente, esta “construção discursiva” sugere um cenário político decorrente da expressão de relações sociais antagônicas, de oposições de interesses discursivamente articulados para nomear determinadas experiências: por exemplo, o “povo” em oposição à “elite”, os ricos contra os pobres, “nós” em oposição a “eles”. Resulta evidente, desta maneira, que a ideia de esfera pública, para Laclau, está constituída pelo conflito e pela divisão, caracterização societária necessária, inclusive, para a formação de uma política democrática e plural. Como se percebe, Laclau não aderiria a uma ideia de esfera pública dominada pela argumentação racional à la Habermas , algo que acompanhou, durante os anos de 1990, grande parte das análises da sociedade civil e do Estado no ambiente acadêmico. Por isso, e como bem afirma Beasley-Murray (2010), para Laclau o “povo” é um sujeito político constituído por meio da instância política do populismo, mais do que um sujeito prévio a uma política populista que o expressaria.
O populismo se entenderia, assim, como uma lógica própria de constituição da política, e o “povo”, uma matéria-prima discursivamente construída. O que, em definitivo, estaria implícito nesta perspectiva é uma descrição da realidade social compreendida como uma “rede discursiva” de identidades políticas (com seus interesses) materializadas em relações sociais antagônicas. Estas identidades, constituídas nas diversas lutas e articulações, assumem o que Laclau define como “posições de sujeito”, “posições” que emergem das relações políticas e ideológicas de dominação constitutivas em uma formação social determinada.
Aqui, justamente, chega-se a uma noção chave em Laclau. A noção de “posições de sujeito” seria central para compreender a dinâmica do populismo. Para Laclau, toda “posição de sujeito” é, indefectivelmente, uma “posição discursiva”, que participa do caráter aberto do discurso e que não fixa totalmente essas “posições” em um sistema fechado de diferenças. Dependendo, então, da “posição” desse sujeito numa relação social particular, expressada na ampla rede de relações antagônicas pelas quais se vê atravessado, estar-se-ia produzindo um conflito social claro e evidente, passível de poder descrever e estabelecer uma experiência política que conduziria à construção da ideia de “povo”.
Assim, se as “posições de sujeito” são “posições discursivas” em uma determinada estrutura social, deve-se compreender que essas “posições” indicam, também (e como já se antecipou), vários antagonismos que surgem como efeito da heterogeneidade social. Já em uma obra bem anterior, Laclau e Mouffe (1987) tinham atribuído uma enorme importância à noção de antagonismo devido ao fato de que ela torna impossível pensar a “reconciliação final” de todo conflito de interesses. Sem resolução final, todo e qualquer consenso, ao dizer de Laclau, é o resultado de uma “articulação hegemônica”.
Antagonismo e hegemonia
Têm-se, assim, duas noções importantes para compreender a abordagem sobre o populismo à la Laclau: antagonismo e hegemonia. Em definitivo, um cenário político de diversos antagonismos (de acordo com a diferença que as identidades ativam no estabelecimento de determinado conflito) sugere, continuamente, uma divisão do espaço social em duas partes (por exemplo, o “povo” contra a “elite”), sendo isto uma precondição para o estabelecimento de uma dinâmica política populista. Para Laclau, o populismo seria a instância em que o “povo” se encontra, discursivamente, com ele mesmo, a partir de nomear um cenário de conflito de antagonismos claros.
Mas, como bem antecipam Lopes e Mendonça (2013, 13-14), para que se possa falar em populismo é preciso algo mais do que reconhecer o espaço social antagonicamente dividido: “É preciso que o campo popular se consolide a partir de um processo hegemônico de representação por meio da produção de significantes vazios”. Trata-se, evidentemente, de uma “representação qualitativa para além da mera soma de demandas articuladas” (Idem, 14), quer dizer, de um processo político gerador de hegemonias obtidas através da “presença discursiva”. A respeito, Beasley-Murray (2010) afirmaria, por exemplo, que pouco importaria, para a emergência de uma política populista, se as demandas sociais existentes e articuladas por determinadas identidades políticas tenham sido satisfeitas ou não: as demandas fazem com que o “povo” e o ‘bloco de poder’ compartilhem uma relação antagônica, obtenham “presença discursiva”, e quando estas ficam insatisfeitas se conseguiria estabelecer, entre elas, uma “relação de equivalência”, relação que permitiria construir o “povo” como ator histórico potencial. Representação hegemônica como inerente a uma “relação de equivalência” política: chega-se, assim, a outra noção chave nas análises de Laclau.
A noção de hegemonia, de grande importância para compreender a “razão populista”, tem sido uma preocupação constante nas diversas análises sociopolíticas de Laclau. Já presente no seu livro Hegemonia e estratégia socialista , a teoria da hegemonia apresenta a ordem social como o resultado da coerção ou do consenso, sugerindo que a dominação se consegue por uma imposição vinda de cima ou por meio de um contrato vindo de baixo (Beasley-Murray, 2010). Ou as pessoas se consideram sob o domínio de um Estado transcendente, ou se submetem, voluntariamente, à hegemonia dominante. Mas, como a pura coerção resulta verdadeiramente impensável, a teoria da hegemonia termina sustentando que sempre existe um restante de consentimento desejado: as pessoas se mantêm juntas submetendo-se a leis porque, de uma maneira ou outra, pensam o mesmo, da mesma maneira. Como bem argumenta Beasley-Murray (2010), as pessoas prestam seu consenso porque lhes resulta razoável fazê-lo, ou por puro “hábito”.
Em Laclau, a “razão populista” está ligada a esta teoria da hegemonia. As eventuais demandas sociais surgidas concomitantemente às identidades políticas transcendem o seu significado, e passam a fazer parte de uma “construção discursiva” nova. A hegemonia radica, justamente, na articulação de elementos discursivos (demandas, críticas, ideologias) em que a “equivalência” (o ponto comum) substitui a heterogeneidade, de forma tal que o “sujeito popular”, o “povo”, surge como princípio de unificação. A instância populista, para Laclau, seria justamente essa: a operação política por excelência é sempre a construção de um “povo”, e esta construção implica, também, a elaboração de fronteiras discursivas que o “povo” pressupõe e dá início a um novo jogo hegemônico. Populismo e hegemonia são, para Laclau, o mesmo; e o populismo é sinônimo de política (Beasley-Murray, 2010).
Mas a noção de populismo, na perspectiva de Laclau, constrói uma imagem demasiadamente simplificada da sociedade. Estabelece, por exemplo, um cenário excessivamente simplificado em torno de dicotomias por vezes forçadas, em torno a visualizar antagonismos que, mais do que qualquer outra coisa, apresentam-se como se fossem inerentes da política tout court. Sobre seus críticos em torno a sua eventual simplificação do espaço político, Laclau se perguntaria: “(...) não seria essa lógica de simplificação e de tornar alguns termos imprecisos o que constitui a própria condição da ação política”? (Laclau, 2013 [2005], 54). Imprecisão e vaguidade não podem ser erradicadas da esfera pública, algo que Laclau considera como precondição para a posterior construção de significados políticos. O populismo é, em definitivo, um “significante vazio”, e este o grau zero da política.
Para finalizar, pode-se considerar que a “razão populista” pareceu concretizar a promessa de abrir, para muitos, uma nova frente de debate e de prática política após a desorientação provocada pelo declínio do marxismo, e a sua capacidade de mobilização. Por outro lado, também é possível considerar que a versão de hegemonia de Laclau teve uma forte influência no desenvolvimento de certos Estudos Culturais, possibilitando-se perceber uma íntima relação entre os Estudos Culturais e o populismo. Povo e cultura popular fariam parte da crítica cultural e do projeto dos Estudos Culturais, devendo muito a Laclau e a sua “razão populista” algumas das noções analíticas chaves para o seu posterior desenvolvimento. Transcende aos interesses destes comentários sobre a obra de Laclau se perguntar se, de fato, os Estudos Culturais seriam, também, um projeto político populista. A resposta a isto pode ser motivo, quem sabe, de futuras reflexões.■
Referências:
Beasley-Murray, Jon (2010), Poshegemonía. Teoría política y América Latina. Paidós, Buenos Aires.
Laclau, Ernesto (2013 [2005]), A Razão Populista, Três Estrelas, São Paulo.
Lopes,
Alice & Mendonça, Daniel de (2013), “O populismo na visão inovadora
de Laclau”, IN: Laclau, Ernesto, A Razão Populista, Três Estrelas, São
Paulo.
Laclau, Ernesto & Mouffe, Chantal (1987), Hegemonía y
estrategia socialista. Hacia una radicalización de la democracia, Siglo
XXI, Madrid.
Ernesto Laclau
Foto: Wikimedia Commons
Ernesto Laclau nasceu em Buenos Aires, em 1935.
Faleceu em Sevilha, na Espanha, em 2014. Teórico político, foi
pesquisador e professor da Universidade de Essex, no Reino Unido.
Recebeu o título de Doctor Honoris Causa de diversas universidades, como
Universidade de Buenos Aires, Universidade Nacional de Rosário,
Universidade Católica de Córdoba, Universidade Nacional de San Juan e
Universidade Nacional de Córdoba.
O pensamento de Laclau e de sua companheira, a cientista política belga Chantal Mouffe, é geralmente definido como pós-marxista. Ambos participaram do movimento estudantil dos anos 1960 e trabalharam com a hipótese de aliança com a classe trabalhadora para criar uma nova sociedade. Posteriormente, Laclau e Mouffe abandonaram o determinismo econômico marxista e a luta de classes e passaram a enfatizar a importância de se desencadear uma democratização radical e um antagonismo pluralista no qual se possam expressar harmonicamente os conflitos sociais. As ideias de Laclau e Chantal Mouffe constituem uma das principais influências intelectuais do Podemos, na Espanha, e do Syriza, na Grécia.
Entre seus livros mais citados, destacam-se Hegemonia e Estratégia Socialista: por uma democracia radical e plural (São Paulo: Intermeios, 2015) e A Razão Populista (São Paulo: Três Estrelas, 2013).
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