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quarta-feira, 20 de julho de 2022

 

Guerra, inflação e estagnação

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Por PLÍNIO DE ARRUDA SAMPAIO JR.*

Nas economias centrais, pelo segundo ano consecutivo, a taxa de elevação do nível geral de preços caminha para o patamar de dois dígitos

A guerra na Ucrânia provocou uma mudança de qualidade na conjuntura econômica internacional. O crescente envolvimento dos Estados Unidos no conflito abalou irremediavelmente as bases da ordem global multilateral, acelerando a desintegração da economia mundial e impulsionando a configuração de blocos geopolíticos antagônicos que contrapõem o Ocidente, capitaneado pelos Estados Unidos, à Ásia, liderada pela China. As consequências econômicas do confronto comprometeram a recuperação do PIB mundial. O espectro da estagnação do crescimento e da inflação elevada coloca-se como perspectiva.

O impacto negativo da guerra sobre a taxa de lucro e sobre o comércio internacional redundou em substancial reversão das expectativas de expansão da economia mundial. A tendência recessiva foi reforçada pela política sanitária de lockdown do governo chinês e pela reversão da política monetária expansionista das economias centrais. Como consequência, as estimativas de expansão da produção mundial e do comércio internacional foram substancialmente rebaixadas.[i]

Entre as economias desenvolvidas, a União Europeia será a região mais atingida. Entre as subdesenvolvidas, os países mais pobres e dependentes da importação de alimentos serão os mais penalizados.[ii] A perspectiva para 2023 é de que as economias desenvolvidas entrem em recessão e que se instale um regime de baixo crescimento.[iii]

Ao acentuar os desequilíbrios entre oferta e demanda numa série de mercadorias estratégicas para o funcionamento da economia global – como produtos energéticos, componentes industriais essenciais, particularmente semicondutores, bem como insumos básicos e alimentos –, a guerra da Ucrânia deu novo ímpeto ao surto inflacionário que acompanhou o rebote do crescimento, após a forte retração da produção provocada pelas medidas de quarentena nos primeiros meses da pandemia.

Nas economias centrais, pelo segundo ano consecutivo, a taxa de elevação do nível geral de preços caminha para o patamar de dois dígitos, colocando em questão a continuidade de um ciclo de inflação baixa que já durava quase quatro décadas.[iv] A tendência à expressiva desvalorização das moedas em relação ao dólar, provocada pela fuga para a segurança diante das incertezas do cenário internacional, deve pressionar ainda mais a desestabilização das expectativas inflacionárias.

A decisão das autoridades econômicas dos Estados Unidos e da União Europeia de apertar a política monetária, invertendo anos de injeção de liquidez na economia, não será capaz de restaurar o regime de estabilidade de preços da era de ouro da Grande Moderação. A inflação em curso não pode ser reduzida a um problema de excesso de demanda que seria resolvido com um freio de arrumação que, ao deprimir o mercado de trabalho, quebraria o ímpeto de elevação dos preços. Na verdade, os salários sequer têm conseguido perseguir os preços.[v]

Para além de desequilíbrios transitórios entre a demanda e a oferta, a inflação que corrói o poder de compra dos trabalhadores tem um caráter estrutural, condicionado por mudanças de grande envergadura na dinâmica de expansão do mercado mundial, na composição dos gastos das famílias, na organização das cadeias de valor em escala global, no comportamento do mercado de trabalho e nos custos de insumos energéticos estratégicos.

A maior responsável pela aceleração inflacionária tem sido a total liberdade das grandes corporações para aumentar indiscriminadamente as margens de lucro como forma de compensar a redução da taxa de lucro provocada pela contração dos mercados e por aumentos nos custos de produção, logística e transporte.[vi] A desenfreada especulação comercial e financeira com commodities agrícolas – um efeito colateral da desregulamentação indiscriminada dos mercados – agrava as pressões inflacionárias.

Não há possibilidade de uma volta ao passado. A segmentação do mercado mundial em blocos econômicos antagônicos inviabiliza a reconstituição do padrão de produção, distribuição e circulação dos anos de glória do neoliberalismo. O apelo ao choque ortodoxo, baseado no arrocho salarial e na austeridade fiscal como meio de domar a inflação, só interessa às grandes corporações e à plutocracia global, que procuram, por todos os meios, potencializar sua taxa de exploração do trabalho e proteger suas riquezas dos efeitos corrosivos da inflação.

A crise da ordem global aprofunda-se. A estagflação é um sintoma das dores de parto de uma nova ordem econômica internacional. Se as grandes economias de escala geradas pelo movimento de integração ao mercado mundial e a concorrência intercapitalista baseada na arbitragem salarial em escala global propiciaram um longo ciclo baixista de preços, processo que atingiu o clímax na integração da China e da Rússia na Organização Mundial do Comércio (OMC), é razoável supor que o processo de fragmentação da ordem global desencadeará tendência inversa. O sistema capitalista mundial encontra-se em transição para uma nova fase, cujas duração e características serão definidas em última instância pelo desdobramento da crise capitalista, pelas mudanças no equilíbrio geopolítico internacional, pela gravidade da escalada da crise ambiental e, em última instância, pelo caráter da luta de classes.

Na ausência de uma solução alicerçada na luta da classe trabalhadora, a política de administração da crise capitalista pela linha de menor resistência, materializada no aprofundamento das reformas neoliberais, deve exacerbar a tendência recessiva que abala o funcionamento do sistema capitalista mundial, intensificar a instabilidade financeira, acirrar as rivalidades nacionais, agravar a crise ambiental e aprofundar a desigualdade social e a pobreza, tudo contribuindo para o acirramento das tendências xenófobas e reacionárias que abalam progressivamente as próprias bases da noção de res pública como um dos princípio organizadores fundamentais do Estado burguês.

*Plínio de Arruda Sampaio Jr. é professor aposentado do Instituto de Economia da Unicamp e editor do site Contrapoder. Autor, entre outros livros, de Entre a nação e a barbárie – dilemas do capitalismo dependente (Vozes).

in A Terra é Redonda

 

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