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segunda-feira, 29 de março de 2010

O Homem Revoltado

Ao revolucionário prefiro o revoltado. Este não corresponde ao estádio anterior, mas ao estádio posterior, ao estádio que permanece. Não se vai do revoltado ao revolucionário, mas do revolucionário ao revoltado, ou fica-se neste perpetuamente. Quando se abandona a revolta, não se torna revolucionário, torna-se submetido, conformado, resignado. O estado de resignação é o oposto da revolta. O revoltado abomina o resignado, porque este é o obstáculo maior de todas revoltas bem sucedidas. Mas também desconfia do revolucionário, porque este tende à submissão do mesmo modo. Insubmeteu-se contra um poder para se instalar num novo poder, aprová-lo com a fé dos crentes, justificar os seus erros e os seus crimes, desculpa-los como «desvios» da sacrossanta doutrina. O revoltado, pelo contrário, deseja os fins mas acautela-se com os meios.

domingo, 28 de março de 2010

NOITE

À noite há criaturas que vomitam nas valetas

O gordo jantar regado com abundância.

À noite há homens deitados nas sarjetas

Sobre cartões tapados com jornais.

À noite há automóveis velozes com belas damas ao volante

E há crianças com o olhar baixo que pedem.

À noite há senhores de braço dado com a amante

E mulheres esquálidas de olhos esgazeados.

À noite há estrelas brilhantes no firmamento

E mortos-vivos que deambulam desempregados.



Saberás tu, Marta, porque são tão diferentes

o oceano e o deserto?

Vou morrer com perguntas na garganta

Tão longe de mim o que esteve tão perto.

sábado, 27 de março de 2010

MANHÃ

Estão maduras as maçãs no quintal


As abelhas despertam da letargia

Com os meus primeiros raios de sol

O cão ladra a um bando de pardais atrevidos

O gato lambe-se ocupado no seu asseio.

Vejo-te sorridente ao portão

Trazes uma blusa escarlate, um casaquinho de lã,

Caminhas suavemente para mim como quem dança

O céu segura as nuvens para que o sol

Ilumine o teu porte de corça.

Nem te apercebes que a paisagem muda

Que uma brisa fresca sopra do mar

Tão longe, para ti.



Vem para que o mundo emudeça

Vem para que eu julgando amor

Da verdade me esqueça.

NA Hora Da Nossa Morte (FIM)

DIÁRIO DE MARTA -22


Sei onde poderia contactar com o Carlos, a Carla informou-me, esteve a prestar um trabalho ocasional na firma de arquitectos; foi aí, de resto, que o conheceu. Não me sinto ainda capaz de o procurar. Um destes dias em que esteja cheia de energia, optimismo, coragem. Aliás, se ele estivesse muito interessado já me teria encontrado no hospital onde trabalho, bastaria telefonar para lá a perguntar por mim. Bem bom seria, ajudar-me-ia a esquecer o Nuno, o apelo da carne ainda é muito forte, mais forte ainda a traição que me aplicou. Adiante.

DIÁRIO DE MARTA -23

Fiz ontem uma visita ao professor Ramos. Encontrei-o adoentado, enfraquecido. Evitou propositadamente explicar-me o que se passava com saúde dele; apesar disso, pôs-me tão à vontade que acabei por confessar-lhe o fracasso da minha relação com o Nuno, que ele, evidentemente, não conhece. Não me deu conselhos como é seu costume, narrou, antes, alguns acontecimentos amorosos funestos da sua vida, com distanciamento e sem amarguras. Factos, são factos, rematou. Não vale a pena chorar sobre o leite derramado. Muito embora hajam relações amorosas que se reatam, a regra geral é que quando chegam ao fim não há nada a fazer. É necessário conservar a lucidez suficiente para nos apercebermos de a coisa chegou ao seu termo, sem remédio. A tentação comum é substituir um parceiro por outro, com excepção daqueles que passam o resto da vida a bater com a cabeça nas paredes. Conservar a cabeça para entender a tempo, antes de cometer asneiras, que a oportunidade passou, que a experiência findou, que a luta pela reconquista não vale sequer o esforço.

DIÁRIO DE CARLOS -19

O meu projecto para o Centro de Cultura foi aprovado pelo Governo Regional (a Câmara Municipal preferiu que fosse ele a assumir os encargos). Não ser, assim, propriedade municipal, mas regional. Obrigou-me, tal transferência, a algumas alterações, será maior para albergar maior número de utentes e de valências. Ficará implantado num vasto espaço público, um espelho de água, arvoredo, canteiros, bancos para os mais idosos e para os casais.

A convulsão social continua. Instalou-se a anarquia. Desejo ardentemente que ninguém se lembre, nesta confusão sem controlo, de praticar estragos na minha ponte. Por ora, verifico com prazer que ela não é utilizada somente para trânsito, também pares de namorados escolhem-na para os seus idílios, e já observei até uma sessão de fotografia de um casamento, ali mesmo, por debaixo das abóbadas da ponte, todos felizes e contentes.

Vou visitar o professor Ramos. Desconfio que anda doente.

DIÁRIO DO PROFESSOR RAMOS- 12

Recebi as visitas da Marta e do Carlos. Decidi juntá-los em minha casa, por isso vou convidar ambos para o mesmo dia e hora, sem lhes comunicar a intenção. A minha doença agrava-se. Não tenho ninguém a quem deixar as minhas parcas heranças. Talvez venham a ser eles os meus herdeiros.

Gostava de ter saúde para participar nas lutas sociais que se desenrolam. Às vezes meto-me no carro e vou assistir. Por enquanto não vislumbro uma firme condução das lutas, parece, pelo contrário, uma absoluta anarquia. As forças repressivas –policiais e militares- não parecem controlar já a situação. Alguns poderosos já se pisgaram para o estrangeiro, os grandes dão à sola.

DIÁRIO DE CARLOS -20

Encontrei finalmente a Marta. Por acaso ou não, estava na casa do professor Ramos quando lá fui ontem. Está bonita, madura, menos rebelde do que era, menos inquieta, mais serena, embora com alguma ponta de tristeza mal disfarçada no seu olhar limpo. Saímos juntos. Escolhi um bom e retirado restaurante na Praia Azul, bem perto da residência dela. Conversámos sobre o presente. Na próxima vez conversaremos sobre o passado. Fiquei comovido, o que não é costume em mim, o inefável indiferente…

DIÁRIO DE MARTA -24

Reencontrei o Carlos! Que homem bonito se fez! Contido nas palavras, mas nada pobre de inteligência. Transmitia tranquilidade. Igual a si próprio, sempre assim o conheci. Quando me separei dele há vinte anos reagiu exactamente desse modo. Recordo bem as últimas palavras dele: “Ok, fica bem, e fazes o favor de ser feliz!”. Nunca mais me procurou. Vinte anos. Uma vida. Que bom foi encontrá-lo, até que enfim!



EPÍLOGO OU PÓSFÁCIO

Tenho vinte anos, sou filho do Carlos e da Marta. Encontrei estes diários. A minha mãe autorizou a sua publicação, que achei oportuna. O professor Ramos já faleceu há muito tempo, pouco depois do reencontro dos meus pais. O meu pai morreu recentemente.

A anarquia transformou-se em revolução. Os costumes hoje são completamente diferentes, as tecnologias trouxeram-nos imensos benefícios, bem distribuídos por todos. Não existe mais, aqui, entre nós, miséria, pobreza, doenças que não são tratadas, ignorância endémica, desemprego. O bem-estar é geral e uniforme. Não garante a felicidade individual automaticamente, mas proporciona igualdade de condições e oportunidades.

A Ponte do meu pai ainda lá está, guardada e tratada com desvelo e carinho. A sua obra-prima, todavia, é o Centro de Cultura. Foi nele que aprendi as artes que cultivo. Nele revejo os sonhos de Carlos. Na ponte, revejo o amor entre os meus pais.

FIM

Éticas de classe

A Ética possui dois sentidos: um, define-a como investigação dos valores, normas, regras, etc. de ordem moral, o seja, o que é o Bem e o Mal; outro, é o cumprimento de determinadas normas, valores, etc. As morais são exteriores e independentes do indivíduo, coercivas e relativas; exprimem também a acção dos indivíduos, uma acção regulada por valores. As morais sofrem um devir, são históricas, e condicionadas pelas situações concretas de um grupo social e de uma formação social; a organização económica é determinante na formação de uma moral dominante, isto é, as relações económicas influenciam grandemente as outras relações sociais, incluindo, portanto, as relações morais. Iso é claro hoje: os valores económicos fornecem o status, os habitus, determinam os papéis e os lugares, governam os tempos de trabalho e os tempos livres. Tal não significa que o «capital cultural» não seja um poderoso agente; significa que ele próprio não está imune ao poder económico. Nem as simbologias com que se legitimam os poderes. Outrora a espada e a cruz, lado a lado, legitimavam o poder político, o qual, por sua vez, representava um poder económico.
Os senhores Amorim e Belmiro de Azevedo não exibem a cruz e a espada (ou o ceptro). Mas a ideia é a mesma. A forma é que muda.O Presidente Obama é o chefe supremo das forças armadas imperiais. E foi eleito depois de bem escrutinada a sua moralidade.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Max Weber (1864-1920), um dos «pais» da Sociologia, escreveu um livro em que investiga «A Ética do Protestantismo e o Espírito do Capitalismo», mostrando como determinados comportamentos típicos da religião não-católica influenciaram grandemente o desenvolvimento do capitalismo nos países e territórios onde o protestantismo foi a ética dominante. O «empreendorismo», como ora se designa bem ou mal, teve, a acreidtar em Weber, um "espírito" ou uma ética e os capitalistas acreditavam nela e comportavam-se conforme os seus preceitos (espírito de poupança, vontade de enriquecer, solidariedades de grupo, filantropias, ousadia em investir regulada pela cautela, etc.). O «espírito do lucro», digamos assim. Weber atribuiu ao capital um «Espírito». Enriquecia-se pensando nos bens terrenos e desejando o Céu, predestinados ou eleitos. O capitalismo possuia uma missão histórica e religiosa (sancionada pela religião). Una anos antes dessa obra famosa Karl Marx e F. Engels haviam atribuído à classe operária a missão histórica (historicamente sancionada , economicamente justificada) de «coveira» do capitalismo. Max Weber não foi, ou não pretendeu ser, um mero «ideólogo» ao serviço do capital: o que julgou foi que o Capital possuía uma ideologia pela qual agia como agia e com a qual se justificava.
Interessante será comparar com os nossos tempos: qual a ética do Capital hoje? Ideologia tem-na, seguramente, e propaga-a abundantemente. Mas Ética?? Uma coisa é certa: não é a ética do protestantismo levado à letra e ao «espírito». Rigor? Confiança e cumprimentos dos acordos e contratos? Honra nos negócios? Espírito de fé no progresso?
Ficam as perguntas.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Reflexões sobre a Política

Nunca antes como no capitalismo a Política se trnaformou em gestão da circulação do dinheiro e dos negócios. A política não se reduz à Economia, mesmo no capitalismo, contudo é no capitalismo que ela se mostra mais condicionada pela Economia. O Estado possui outras funções além das económicas, mas os Governos revelam-se gestores do capital e dominados por ele, pelo grande capital económico-financeiro. Hoje isto é mais evidente do que nunca (ou é nas crises que tal se demonstra).

Reflexões sobre a Política

II
1. A Política trata das formas de Governo. Se a sociedade está organizada verticalmente, o vértice da pirâmide é ocupado pelo Governo. As Repúblicas e as Democracias caracterizam-se por um Governo Central que convive, melhor ou pior, com outros poderes. A doutrina de T. Hobbes não continha tal possibilidade, ao contrário da teoria política de J. Locke.
2. Distingue-se Governo, de Regime Político. O primeiro termo aplica-se normalmente a um Executivo, na divisão dos poderes, cuja existência não depende do regime político. Este pode assumir formas diversas: parlamentar, presidencialista, ditadorial, etc.
3. Os regimes políticos não existem independentemente do tipo de sociedade: aristocrática, monárquica, republicana. Assim, os regimes políticos são monárquicos, aristocráticos, republicanos, democráticos (as repúblicas podem ser ditaduras, ainda que os termos se contradigam, ou democráticas; podem ser ditas «populares» quando se diferenciam das repúblicas que se baseiam no princípio da representação do poder). 
4. Seja qual for o Governo e o Regime, a questão básica é esta :«Quem detêm efectivamente o Poder?». O Poder é delegado em representantes apenas, ou proporciona-se uma participação real e actuante do povo, a entidade que detém a soberania na srepúblicas? A palavra «efectividade» é decisiva, portanto. Efectivo é sinónimo de real.
5. Logo, a questão da «realidade» prende-se com a objectividade. Possuir ou alcançar um conhecimento objectivo da Política é descortinar a realidade. A quem pertence o Poder? Como é distribuído? Como e para quê é exercido?


Reflexões sobre a Política

1. Existe uma filosofia da Política?
A pergunta é inútil. Não se trata se saber se existe, nem para que serve a sua existência, mas, antes, se é possível um conhecimento objectivo da Política.
2. A Política distingue-se de outras actividades humanas, como a Economia por exemplo, na medida em que diz respeito ao conjunto de actividades que organizam a coesão e unidade das sociedades humanas.
3. Não seriam necessárias essas finalidades se não existisse a Economia. A Economia diz respeito ao modo como os seres humanos procuram satisfazer as necessidades (comer, vestir e outras) - o modo como produzem os bens, como os distribuem entre si e as relações sociais que estabelecem nesses processos (quem produz, quem se apropria).
4. A Política serve para reger esses e outros processos em primeiríssimo lugar: é o produtor directo dos bens o proprietário dos meios e dos excedentes que produz, ou produ-los para um outro? A Política rege através de leis essas relações, o direito de propriedade em primeiríssimo lugar. Portanto, a Política resulta dessa necessidade e, por via das relações contratuais ou dos direitos e deveres, prolonga-se na esfera do Direito.
5. A Política e o Direito foram adquirindo, com o decorrer dos tempos, uma autonomia relativa; engana-se quem julgue que essa autonomia é absoluta. Muito embora intervenha e actue directa e indirectamente sobre a esfera económica (através, por exemplo, das relações contractuais, das leis, das polícias, etc.), é a esfera económica que se mantem determinante e que esteve na sua origem histórica. Produzir, acumular e consumir bens de primeira necessidade (comer, vestir-se, proteger-se da temperatura, etc,) constitui o acto originário grupal e individual, psicológico e sociológico.
6. Sobre as necessidades vitais, desenvolveu-se o trabalho. Sobre o trabalho desenvolveram-se regras (lugares e papéis no interior do processo, divisão do trabalho, valor do trabalho). Sobre as necessidades vitais desenvolveram-se novas necessidades, desejos e motivações.
7. Esses comportamentos grupais, essas relações sociais, foram sempre acompanhadas de linguagens, maneiras e estilos de expressão e comunicação, e necessidades de explicação. Essas explicações consituem as religiões, as ideologias morais, políticas, jurídicas. Explicações que justificam este ou diferentes modos de viver, de gozar, de obedecer, de opor-se, de morrer.
(cont.)

quarta-feira, 24 de março de 2010

Na Hora Da Nossa Morte (novela, cont.)

DIÁRIO DE CARLOS -18


Projectos. O projecto da ponte, o projecto do Centro de Cultura. A ponte já quase está erguida, menina dos meus olhos. O segundo projecto está quase terminado. Não sou um espírito analítico, ou vejo a coisa toda inteira duma só vez, ou recomeço. Não me serve de nada caminhar por etapas, a pensar em cada uma por sua vez. Ou sai o todo, ou ando meses a pensar nele. O Centro de Cultura brotou da minha cabeça como Vénus da coxa do Pai. Gostei. Se os outros não gostarem, paciência. Passei metade da vida a construir casas ao gosto do freguês. Mercadoria. Vendo-me por um salário (enfim, não é nada mau), produzo um projecto que a firma e o freguês encomendam, submeti-me sempre ao interesse da firma e ao gosto do comprador. Produzi, não criei. Vendi-me, não sou livre. Quinze anos de rotinas. A ouvir o Vasconcelos «Faz assim!». A ouvir o freguês «Quero assado!». O prestígio que granjeei , qualquer que seja o mérito, é uma treta: foi muito maior o desprazer em produzir do que o prazer. Somente a ponte que projectei e vejo a erguer-se me apaixonou. As paixões nunca foram o meu forte e, por isso, nunca foram a minha fraqueza. A minha vida foi um sucedâneo de acontecimentos sem significado. Transcendente, pelo menos. Nem profundo, nem transcendente. Elos de uma cadeia de factos: chega uma encomenda ou uma oportunidade – mais um encargo que oportunidade – e cumpro (raramente dentro dos prazos). A pequena ponte, modesta na sua dimensão, sem a grandiosidade das pontes que atravessam os grandes rios, ao contrário de centenas de moradias, mobilizou e despertou as energias mais adormecidas, que eu nem acreditava que possuísse.

Ambiciono fazer do projecto do Centro de Cultura uma obra igual ou maior. Imagino-o como um pólo atractor, uma fonte de dinamismo, de convívio comunitário e criador, uma escola de aprendizagens várias, que desenvolverão os gostos, o carácter, a personalidade de inumeráveis crianças e jovens. Se ainda estiver vivo quero vê-las entrar apressadas e a saírem felizes. É o meu contributo cívico. Nunca fiz nada que tal merecesse. Nunca pertenci a um partido, nunca ingressei em movimento algum, nunca dei um pataco a nenhuma causa, nunca chorei uma lágrima de comoção ou de compaixão. Tudo me era indiferente. Jamais, ou quase, seduzi uma mulher com as artimanhas do costume, sempre achei uma perda de tempo, deixei-me seduzir e apenas quando quis. Foram-se embora, deixá-las ir. A bem dizer nem sequer amei a mulher com quem estive casado quinze anos. Gostei dela, é tudo. Tive amantes ocasionais, nunca pedi perdão por isso. Quando ela passou a imitar-me, achei justo, estávamos quites. Se ela o fez por vingança não me apeteceu pensar nisso. Nunca tivemos filhos para haver dramas.

Ganhei bom dinheiro, gastei-o como e quando quis. Todo. Chapa ganha, chapa gasta. Bares e restaurantes caros, bons hotéis para uma noite de sexo, nem frio nem ardente.

Subitamente despertei da letargia. Não foi a morte da mulher (ou foi?), talvez fosse o projecto da ponte, o projecto do Centro de Cultura para crianças desprotegidas. Talvez. Ou talvez, antes disso, a relação com a Carla. Iniciar uma jovem mulher fez-me sentir um Pigmaleão, a tal peça do Bernard Shaw. Como se desejasse ser melhor do que eu era efectivamente; e ao tentá-lo, ficar e ser realmente melhor. Encontrei-me? Não sei. Encontrei através dela a minha juventude. Capaz novamente de sonhar. De acreditar. A partida dela não foi um fracasso, um desastre, uma derrota. Foi um fim de um ciclo.

terça-feira, 23 de março de 2010

Na Hora da Nossa Morte (Novela, cont.)

DIÁRIO DO PROFESSOR RAMOS – 11


Lá fora a revolução continua, nas ruas, nas fábricas, nas praças, no parlamento, nas assembleias, nas rádios e televisões, são greves que se sucedem umas às outras, na administração pública, nos aeroportos, nos caminhos de ferro, nas camionagens, nas empresas, nas oficinas, são protestos e reclamações, são gritos e cânticos de guerra e de união, são discursos inflamados que mobilizam multidões, são deputados que se agridem nas sessões, são polícias que agridem nos passeios, são bandeiras da cor do sangue e da revolta, são lenços brancos que se agitam das janelas e das varandas quando o povo passa…É agora! Afirmam, Basta! Garantem, A rua é do povo! Exigem. Os de baixo já não suportam os de cima. O poder está dividido. O Poder, esse supremo fim das revoluções.

Eu sinto-me cada vez mais doente. A revolução dá-me forças, o corpo tira-mas. Irei morrer sem ver o seu desfecho?

Na Hora Da nossa Morte (Novela, cont.)

DIÁRIO DE MARTA -21


O encontro com a Clara foi prolongado. Jantámos no Centro Comercial do Monumental, fomos a seguir ao cinema. Foi fácil e rápido esclarecer o mistério. Não lhe confessei evidentemente o meu enlace com o Nuno, nem, sobretudo, o desenlace. Bastou-me perguntar se ela namorava e, depois, com quem. Como de nada suspeitava em relação a mim, confidenciou-me o que as mulheres confidenciam às outras com boa vontade. Namorava com o Nuno! Claro, já adivinhava. O que não adivinhava era o resto: que ela acabara de com a relação. Porquê? Porque descobriu que ele a atraiçoava. Com quem? Não sabe. Não sabe e não lhe importa saber. Conjectura que será provavelmente com uma colega de ambos, do curso, uma tal Susana, com quem ele se entretém demasiado…De mim, nem a mais leve suspeita.

Aqui está a verdade nua e crua. Tão parva fui eu como a Clara. Arquitectámos uma armadilha para o gajo cair. Uma pequena vingança, para ele aprender. Contudo, quando nos despedimos, já a noite ia alta, desistimos da ideia. Não vale a pena. Desmascará-lo como? No fundo, é um gajo como os outros. Saltita de flor em flor como as abelhas. Um dom João de pacotilha. A receita do costume. Parece que agora há mais iguais a ele. Culpam as mulheres, cada vez mais atiradiças, mais bonitas; nós culpamo-los a eles. Sinal dos tempos. No fundo, são uns fracos.

Sinto saudades do professor Ramos. Firme na sua solidão voluntária. Ouvinte e conselheiro excepcional. Na verdade, não dá conselhos, nem profere lições. Narra as suas experiências de tal modo que as faz assemelhar-se às dos outros. Gosto dos seus olhos cheios de meiguice. Alguma vez fez mal a alguém? Provavelmente, quem não fez? Mas sem maldade, seguramente sem maldade. Quantas mulheres amou? Muitas, certamente. Alguma mais do que as outras? Talvez, sucede com quase todos nós. Terá saudades minhas?

Da conversa com a Carla, mais espantoso do que ser também vítima do mesmo traiçoeiro, mais espantosa do que essa confissão 8que nos aproximou ainda mais) foi a confidência, quase despropositada, de que namorara com o Carlos. Exactamente: o meu antigo namorado do liceu. Espevitou-me a curiosidade: fiz-lhe contar tudo sobre quem era esse Carlos, como era, onde parava. Aí não resisti a contar-lhe a minha vida passada com o Carlos, há vinte anos. Ficou boquiaberta, este mundo é pequeno. E se nos encontrássemos os três? Desafiei-a. Que não, o Carlos suscitava nela sentimentos confusos, fortes, que não compreendia, nem dominava. Foi o primeiro homem com quem foi para a cama, o seu primeiro amor sério, ou a sério. Não, era melhor não. Ensinara-lhe tudo o que ela quis aprender.

Depois disto gostava de reconhecer esse Carlos. Mudou ou é o mesmo?

Na Hora Da Nossa Morte (novela, cont.)

DIÁRIO DE MARTA -20


Ciúme. Que fazer deste ciúme? Moê-lo, remoê-lo? Obcecada com as lembranças? Remoer as lembranças não faço farinha nenhuma. Não crio nada que não seja a dor, pura perda de tempo, puro masoquismo. Lembrar as suas carícias, as suas palavras, as fantasias, o seu corpo, adjectivá-lo? Para quê, porquê? Nem as suas palavras eram profundas, nem a superfície do seu corpo era singular, não foi o primeiro, não será o último. Vingar-me? Em quem? nele, em mim? Não me seduziu, deixei-me seduzir, não me encontrou, fui eu que o achei. Nem o perdi. Nunca tinha sido meu. Estou furiosa, e nem sei porquê. Não é ele tão importante assim que mereça destruir-me. Ou destrui-lo. Ninguém merece que se morra por amor. Só nos filmes. E esses só me comovem quando o objecto de amor morreu sem culpa formada. Como a minha filha Gisela. Era eu que devia estar naquele carro, era eu que devia ter morrido no acidente, não ela. Porém, continuo a viver, a resistir, há em mim uma força bruta que me obriga a sobreviver. Este mau bocado há-de passar. Esta dor é infinitamente menor do que a da perda da Gisela. Por ele não tive amor, tive paixão. Caprichosa, evasiva, fútil, passageira. Vai passar.

Com quem me atraiçoou? Vou encontrar-me com a Clara. Ela conhece o Nuno, foi através dela que o conheci.

Na Hora Da Nossa Morte ( Novela, cont.)

DIÁRIO DO PROFESSOR RAMOS -10


Chegou a primavera, o céu não canta louvores ao Senhor, mas as andorinhas regressam aos seus ninhos, sempre os mesmos casais, sempre os mesmos ninhos, perpétua repetição da natureza, quantos enigmas no instinto dos animais, buscamos enigmas nas palavras quando há outros à frente dos nossos olhos, não os apreciamos, o que dizemos captura-nos, eu disse “Chegou a primavera!”, o nome é um signo convencional, outras línguas outros signos, porém o que observo é idêntico, ainda que a paisagem seja diferente, o ciclo repete-se, sejam embora diferentes os significados o sentido é similar, as roseiras ganham folhas, os botões fechados, adormecidos, incham grávidos da flor que desponta, a morte do botão é a vida da flor, o processo é interminável, das sementes que a flor morta abandonou brotará a mesma espécie, é a lógica da vida, uma lógica objectiva que rege os processos naturais, quer eles sejam completamente diferentes ou não, a lógica que rege a linguagem sobre jaz a outras lógicas naturais, mais determinantes, imutáveis a não ser que o ambiente as destrua, extingam-se todas as rosas, permanecerão outras espécies de flores, porque razão a lógica da linguagem humana haverá de preencher toda a filosofia, as linguagens da natureza são tantas e várias…Reduzir-se-ão todas à mesma linguagem, à mesma lógica? «Deus ou a Natureza», Espinosa resumiu numa fórmula o Todo. Soubesse ele que nem o Todo é eterno, que o que perpetuamente se repete não se repete sempre da mesma maneira, que o que é agora nem sempre o foi, a certa altura não existiu, a certa altura deixará de existir.

(Escuto o Concerto para piano nº1, de Tchaikovsky, e penso que o mundo e a vida têm múltiplos significados e apenas dois sentidos. Os significados somos nós que lhos emprestamos. Não vejo a Marta há meses. Porque atribuo tanto significado à Marta? Pelos seus olhos castanhos e húmidos, pela sua voz entrecortada de pausas e silêncios?)

segunda-feira, 22 de março de 2010

Na Hora Da Nossa Morte (Novela, cont.)

DIÁRIO DE MARTA -19




Eu pressentia que alguém se interpunha entre nós. O Nuno é afinal um jovenzito que, por mais astucioso que consiga ser, não engana sempre, a paixão é cegueira, mas não é estupidez, pelo contrário aguça os sistemas de alarme, espicaça a curiosidade, orienta a atenção para os mínimos pormenores. Os seus olhares distraídos, as mensagens que recebe e não explica, os telefonemas que faço e que ele não atende, os atrasos frequentes aos encontros, una aromas estranhos que emana da sua pele, tão estranhos como perfumes femininos que bem conheço…O Nuno atraiçoa-me. Com quem ainda não descobri. Tudo começou com uma ligeira desconfiança, hoje é uma certeza. Confrontei-o, não se retratou. Explicações evasivas. O ciúme insinua-se como um tóxico, não permitirei que me domine, não permitirei que me faça regredir ao negro e pesado luto donde talvez não haja saído ainda. Darei a volta por cima. Ter um namorado, ao fim de tanto tempo de solidão e desleixo por mim mesma, serviu-me para alguma coisa. Sim. Rejuvenesceu-me. Deu-me alento e amor-próprio. Voltei a sentir-me mulher. Atraiçoa-me mas não alimento vinganças. Talvez não devesse sequer importar-me em saber quem é a outra, mas não resisto a decifrar o enigma. Mais nova, da minha idade? Provavelmente mais nova, provavelmente uma antiga namorada, provavelmente alguém que não saiba que também é atraiçoada. O erro foi meu, mas não me arrependo. Volto a ficar sozinha. Não respondo aos seus telefonemas. Não o quero ver. Não me quero sujeitar à humilhação de acreditar de novo numa mentira. Necessito de sair para fora de mim, de distrair. Não é de desabafar que preciso, não contarei a ninguém. Todo o mundo anda a atraiçoar todo o mundo. Não vale a pena narrar uma traição a quem com certeza também foi atraiçoado. Corta-se a corrente e silencia-se. A bem dizer não o amei. Apaixonei-me. Uma mulher que perdeu uma filha há pouco mais de um ano, que odeia o ex-marido, não pode voltara amar tão depressa e tão facilmente.

Na Hora Da Nossa Morte (novela, cont.)

DIÁRIO DO PROFESSOR RAMOS – 9


Tudo que sabemos pelos órgãos dos sentidos não é uma verdade objectiva absoluta; contudo, sem eles, não saberíamos nada, porque foi neles que começou o conhecimento da humanidade e da criança. Desprezá-los é uma besteira; se os sentidos iludem, também o faz o intelecto. Os sentidos dão-nos das coisas as suas propriedades principais e secundárias; nestas, a interferência do sujeito é maior; no entanto não é uma alucinação. Também as imagens e as palavras não nos fornecem a verdade incontestável e, todavia, constituem um testemunho indispensável. De modo que não existiria filosofia e ciência sem uma boa observação sensível e experiencial. A matemática é de todas as ciências a mais credível; porém, não é a única ciência. As partículas da matéria mudam de posição quando as observamos, mas existem apesar disso e vamos conhecendo algumas das suas propriedades fundamentais. Não é apenas pelo intelecto que conhecemos a correcção de uma hipótese, a justeza de uma afirmação. Sem cérebro, sem os órgãos dos sentidos, sem observação e experimentação, o intelecto não existia sequer. Existem enunciados falsos e refutáveis, e existem verdades que resistem às refutações a que foram sujeitas. Os povos possuem enunciados empíricos que não sendo verdades absolutas, constituem verdades evidentes. A aspiração a uma linguagem inteiramente lógica, composta por regras consensuais que obrigam a conclusões irrefutáveis, uma linguagem universal cristalina como água pura, é uma antiga e sempre reiterada aspiração; os fracassos dos seus criadores demonstra os limites desse ideal. Quando mais verdadeiro um enunciado, mais abstracto. As operações de pura lógica, os axiomas, as equações, apresentam-se com a linguagem, os enunciados mais verdadeiros que o homem conseguiu; contudo, quanto mais abstractos, menos úteis. A ciência tem sido útil porque (ou quando) nos permite conhecer a realidade objectiva, seja com o apoio das matemáticas, seja através dos instrumentos e outros modelos de análise e quantificação. Não foi uma pura operação lógica que revolucionou o mundo, mas a máquina a vapor. Não foi a célebre equação de Einstein que por si revolucionou a nossa visão do tempo e do espaço, mas a teoria sobre a curvatura do espaço.

É com uma boa teoria que as revoluções se processam. Seja na filosofia, seja na ciência particular. A teoria que está contida na análise minuciosa e até quantificável de «O Capital», de K. Marx, não se organizou com base em puras operações lógicas elaboradas pelo intelecto encerrado num casulo de abstracções, mas demonstrando que o mais verdadeiro e importante não é o trabalho abstracto, mas o trabalho concreto. O dinheiro e a mercadoria abandonaram a sua abstracção mistificadora para parecerem em toda a sua nudez crua e bruta de exploração. Eis uma boa teoria que transformou o modo de ver o mundo económico. E político. De interpretar e de transformar. Exemplo de uma teoria revolucionária.

Dia Mundial da Água

Com água lavei as mãos
o rosto
as palavras
ditas
As que não disse
recolhem-se no poço mais fundo
Sem ela morre-se
Por ela mata-se
Vale mais que o oiro
Para quê agradecer a um deus
se foi ela que fez o mundo?

domingo, 21 de março de 2010

DIA MUNDIAL DA POESIA

Erros meus, má fortuna, amor ardente
em minha perdição se conjuraram;
os erros e a fortuna sobejaram,
que para mim bastava o amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
a grande dor das cousas que passaram,
que as magoadas iras me ensinaram
a não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso dos meus anos;
dei causa que a Fortuna castigasse
as minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.
O! quem tanto pudesse que fartasse
este meu duro génio de vinganças!

Luís Vaz de Camões

sexta-feira, 19 de março de 2010

Não passarão!

No próximo dia 25 o Programa de Estabilidade e Crescimento do Governo será apresentado à Assembleia da República para votação. O dia 25 reveste-se de grande significado. Histórico, podemos dizê-lo sem retóricas. Assim sê-lo-á conforme a votação dos partidos PSD e CDS-PP. A sua abstenção (não fica excluída a possibilidade da sua aprovação) ditará o futuro dos discursos dos seus candidatos a líder e do líder que sair vencedor. Se falarem dos pobres, dos desempregados, dos salários de quem trabalha, das pequenas e médias empresas, das pensões e reformas, soará a aldrabice, aquela aldrabice a que eufemisticamente se apelida de demagogia (como se a demagogia fosse o estilo comum e tolerável de fazer política). É tão mau este PEC que até alguns ministros e altos dignatários do PS manifestam reservas, se não até discordâncias (provavelmente acham-no demasiado perigoso). É todo um Programa classista: da classe que se apossou e controla o capital financeiro contra todas as outras classes sociais. É um programa que esbulha criminosamente as classes mais contribuintes, mais trabalhadoras, mais desprotegidas. É o corte dos salários com repercussões no sector privado, das despesas sociais (a começar pelo subsídio de desemprego que já hoje não chega a metade dos mais de 700 mil desempregados), é a diminuição das despesas à colecta de IRS (impedindo o reembolso de centenas de euros por ano nas despesas com saúde, educação e habitação); é o aumento da idade da reforma dos trabalhadores da Administração Pública; é o aumento dos preços (introdução de novas portagens, por exemplo); é o corte no investimento público (pequenas e médias empresas atingidas). E é, finalmente, a privatização de dezenas de empresas estratégicas, que aguçam o apetite dos barões do PSD e do CDS.
Este PEC monstruoso já recebeu louvores dos clubes internacionais do grande capital, incluindo do senhor Durão Barroso.
Ainda não estamos tão mal como a Grécia, diz-se. Esperemos que estejamos tão bem quanto ela no que se refere à resposta popular.

quinta-feira, 18 de março de 2010

OS PARDAIS




Vêm chilrear-me à varanda


Anunciar-me que o inverno já foi


São aos bandos, inocentes,


Saltitando ariscos e lampeiros


«Desperta dorminhoco!»


Como se a rua fosse


Uma planície de margaridas


Um paraíso original


Brincam e esgaravatam e barafustam


Quais petizes largados em liberdade


Como vos invejo,


Persistentes clarins diurnos


Filhos do sol


Pregões da primavera!


Não sei que saudade me dá


Da minha infância perdida


Dos ninhos nos beirais


Quando eu subia ágil para os sonhos


E voava solto com os pardais.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Ensaios sobre os Materialismos (cont.)

«O Que Nos faz pensar?»


Jean-Pierre Changeux (biólogo e professor de neurobiologia no Collège de France, autor do célebre «O Homem Neuronal») e Paul Ricoeur (filósofo, já falecido, autor de importantes obras entre as quais «Teoria da Interpretação», «O Discurso da Acção»,« Ideologia e Utopia», «A Crítica e a Convicção» (Edições 70)

Este diálogo entre um cientista que é em filosofia um materialista e um filósofo eminente que é, em filosofia, um idealista, é deveras instrutivo para o tema que tenho trazido aqui para o meu blogue.

Excerto:

P.Ricoeur- (…) Acredito no carácter universal da moral.

J.-P. C.- Também eu, mas será pelas mesmas razões?

P.R.- Por que razões? Por «razão» devemos entender vários níveis. Em Sources of the Self, Charles Taylor distingue um primeiro nível, o das «avaliações fortes» no plano do discurso habitual, quotidiano, e depois no das racionalizações filosóficas ou outras, enfim, o de que ele chama as «origens» ou a motivação profunda em termos de grandes heranças culturais. A este respeito, vivemos, em sua opinião, de uma tripla herança, a do judeu-cristianismo, a das Luzes, mas também a do romantismo, que se estende ate à ecologia contemporânea. Colhendo sempre neste tesouro de princípios, recursos, acredito que a democracia assenta na capacidade não só de se apoiar mutuamente, como de se ajudar mutuamente, capacidade decorrente destas três grandes tradições, uma baseando de certo modo a justiça no amor, a outra na razão e a terceira na relação com a vida dentro de nós e na natureza ambiente.

J.-P. C. – É uma visão muito ocidental das «origens» e das heranças culturais. As heranças do confucionismo e do budismo, como a dos filósofos atomistas da Antiguidade parecem-me tão importantes de ter em conta como a do judeu-cristianismo. Por outro lado, penso que se precipita a propósito da democracia. Não esqueçamos o carácter violentamente conflituoso do pensamento das Luzes em relação ao judeu-cristianismo.» pp.32, 33.

Notas à margem: 1. Este é apenas um brevíssimo excerto de um diálogo muito rico pelo qual se evidencia com enorme clareza o monismo do neurobiólogo de profissão e o dualismo do filósofo. Racionalismo em ambos, do melhor. Argumentação profunda e consistente. «O Que nos faz Pensar?» é um livro altamente pedagógico e perfeitamente acessível. Obrigatório.
O que é o monismo?
O que é o dualismo?

terça-feira, 16 de março de 2010

Ensaios sobre os Materialismos (cont.)

Filosofia, Sociologia, Psicologia

Dissemos já noutros escritos que o pensar filosófico orienta-se por um de dois caminhos, a um chamamos idealismo, a outro, materialismo. O sufixo «ismo» significa preferência, adopção. Se eu colocar a matéria como noção nuclear, serei materialista; se, pelo contrário, valorizar unicamente ou principalmente as ideias, o pensamento, serei idealista. Neste sentido podemos considerar o idealista como aquele indivíduo que se orienta por um ideal, mas apenas no sentido de que atribui à Ideia uma supremacia sobre a matéria, entendida esta como algo que não possui valor em si mesma (quem lhe atribui valor é o intelecto), um substrato informe. Determinados filósofos exprimiram mesmo um certo desprezo pelas coisas materiais, uma realidade incómoda que aprisionava o pensamento, o qual só é livre quando triunfa sobre o domínio dos corpos; a matéria é demasiado fátua, movediça, mortal, passageira, bruta, enquanto as mais grandiosas ideias são puras, etéreas, eternas. A filosofia ocidental, por influência da doutrina de Platão e da teologia medieval, induziu na formação de sucessivas gerações, séculos fora, a crença no valor superlativo das ideias, do espírito, emprestando à matéria uma categoria de obstáculo, numa espécie de cenário em que a missão do homem é lutar e dominar a natureza, fonte dos males e do pecado. Esta orientação anti-naturalista da filosofia ocidental já foi suficientemente criticada pela filosofia contemporânea e todos sabemos o papel que o filósofo alemão F. Nietzsche desempenhou. Contudo, o idealismo permanece, embora sob outras formas místicas e mistificadoras. De resto, os seus adeptos encarregam-se de prosseguir nos ataques, velados ou não, ao materialismo. Verifica-se por exemplo quando uma certa sociologia resvala para um completo subjectivismo na análise da acção humana, desprezando o carácter exterior que as relações sociais assumem e que oprimem o indivíduo sem que ele sequer se aperceba das causas do seu mal-estar ou dos limites que constrangem a sua mobilidade social e a sua independência. Vemos por exemplo numa certa Psicologia Diferencial que se mune de extraordinários instrumentos de medição mas subavalia os contextos, sobreavalia as intenções e subavalia os actos, constrói um indivíduo abstracto desligado do trabalho e das relações sociais de produção. Estuda-se mais a psicologia do consumidor do que a psicologia do produtor.





A filosofia como consciência da contrariedade

Afirmamos que existe uma constante relação, intrínseca , entre a filosofia e consciência das contradições . Tratar-se-ia de saber qual a filosofia que adquiriu já ou permite adquirir uma mais plena consciência das contradições e ela mesma se apresenta como expressão e elemento da contrariedade da história. E nós julgamos que é a filosofia materialista, com um método dialéctico e um resultado prático. Por definição e intenção é uma filosofia que se liberta de qualquer elemento ideológico unilateral e fideísta (dogmático, apriorístico, particular). O filósofo não só compreende as contradições dos acontecimentos, do viver social, como se coloca a si próprio como elemento da contradição, actor ou agente por um lado da afirmação que nega, por outro da negação que afirma. Isto é, participa na superação das contradições.

Se existem sob os nossos olhos contradições é porque existem necessariamente relações, conexões, ligações. Nem todas elas são contraditórias e nem todas as contradições são antagónicas (antagonistas), podem sê-lo secundárias e podem sê-lo principais. O que nos aparece como separado, aleatório, desconexo, desligado, compõe-se, o mais das vezes de uma unidade, instável, deveniente, sim, mas unidade. Sob a descontinuidade das águas corre um rio (o mesmo). Sob a fragmentação é sempre (ou quase sempre) possível descortinar uma totalidade. Um todo, um sistema, uma estrutura. A complexidade acaba por emergir sobre a linearidade, a superfície. As águas calmas de um lado ocultam correntes submersas. Não há oceanos sem marés e correntes submarinas que influenciam poderosamente os ventos e os climas. Quando observamos uma particularidade, aquilo a que chamamos uma singularidade, é necessário ter o todo diante dos olhos. Não falamos do Absoluto, falamos do todo de uma Coisa ou de um Acontecimento. O elemento parece inerte, parado, permanente, contudo o todo move-se. O seu movimento não é transcendente aos elementos que o constituem, é imanente. Sem o movimento das partículas não existiria movimento do conjunto. A unidade é a unidade das contradições que a animam. A história é o palco onde se manifestam com clareza as contradições (a história colectiva mas não excluímos a história individual). Um indivíduo ao longo da vida adquire uma determinada personalidade, nesse sentido é uma unidade que nos permite reconhecê-lo, prever determinados comportamentos, tende a conservar atitudes e intenções, porém ele é fruto de transformações, aprendizagens, maturações e o senso comum apercebe-se bem de que ninguém está isento de contradições.

segunda-feira, 15 de março de 2010

NOMES

Guardo aquela tela que pintei
contorces-te numa praia inóspita
um oceano de um verde mortuário
ao longe um continente perdido
o céu pinceladas grossas de sangue e carvão.
Quis pintar-te com amor pintei a solidão.
Lembras-te daquela outra
em que ambos em pé te seguro pela cintura,
sob as areias de um deserto?
Do teu rosto guardo muitos,
mas esses dois anunciavam o que hoje sentimos:
o esquecimento.

Lembro-te e não te lembro
como aquelas histórias tristes que me contavam para adormecer.
A soma dos nomes é um nome só
Uma dúzia de casas faz uma aldeia
Um punhado de ilhas, um arquipélago
Um rosário de amores, uma vida.

Foste ave
agora és nuvem.

O viajante modera o passo,
não tem pressa,
sabe que um sono prolongado o espera.

NA HORA DA NOSSA MORTE ( Novela, cont.)

DIÁRIO DO PROFESSOR RAMOS – 8


Já as roseiras ganham folhas no meu quintal, emergem os lírios dos tubérculos. a salsa reverdeje jovial, as alfaces tentam os coelhos bravos, as camélias enlouquecem em súbitas labaredas, piso a terra e sinto-me novo, sessenta anos de história que a primavera rejuvenesce, acaricio esta e aquela folha, sossego este e aquele caule, pressinto-lhe a seiva, os dias solarengos espantam a humidade nos ossos, fiz as análises de rotina, o que vier a ser é o que será, tive dias em que me senti morto, tive outros em que me senti vivo, chorava com facilidade quando era petiz, desaprendi o choro, chorei por ti quando partiste, chorei por mim porque toda a partida é injusta, para um ou para o outro, sempre injusta, chega o ciúme, abandona-nos o juízo, ontem recordei as minhas primeiras férias ao pé do mar, uma colónia de crianças, um tostão semanal, dava para um gelado, apenas um, um cone ou um barquito de massa com o creme gelado por cima, delicioso, surpreende que algumas lembranças fiquem claras e nítidas para sempre, outras não, desvanecem-se, nem segredos são, apagaram-se por qualquer razão obscura, o meu primeiro beijo, ambos da mesma idade, sete anitos, a exploração dos corpos, tu tens uma coisa que eu não tenho, no jardim largo de uma casa apalaçada, somente esse instante permanece, de nada mais me lembro, vou ao pão a pedido de minha mãe, na estrada um carro da polícia, daqueles antigos de cuja marca e cor já não lembro, talvez mais alguns homens, não sei, e um outro, algemado, riscam-se uns traços a giz no asfalto, oiço conversas dos mirones, aquele homem matou outro, esfaqueou-o por ciumeiras, fiquei com certeza fortemente emocionado, sete anos de idade, um homem matou outro, como é possível? Pura ingenuidade, o Mal é ainda desconhecido, naquela idade faz-se a pergunta capital: porque motivo se mata os homens uns aos outros? Vimos a morte por doença ou acidente, aceitamo-la, o assassínio não, não existia televisão, que revolução mental trouxe ela sobre as crianças? Contavam-nos histórias para crianças de arrepiar, bruxas horríveis, madrastas cruéis, metíamos sustos uns aos outros com visões de fantasmas e mortos vivos, recusávamos passar ao pé de cemitérios, porém o homicídio autêntico impressionou-me, até hoje. O que é o Mal? O filósofo Tomás Hobbes afirmou que no estado de natureza somos egoístas e maus, o homem é o lobo do homem, somente através de um contrato comum decidimos alienar essa liberdade má em favor de regras, a civilização domestica, no sentido literal, dá-nos um lar, uma família, uma propriedade individual, um soberano que proteger-nos-á. Jean- Jacques Rousseau, cem anos mais tarde, recusará esta tese: todo o homem nasce livre e igual em direitos, o selvagem é inocente e bom, não é egoísta mas cooperativo, compassivo e solidário, é a civilização que o perverte, corrompe, transforma-se em hipócrita, astuto, egoísta, cúpido e vaidoso, perde o amor-próprio com que nasce, ou transforma-o em orgulho e o orgulho em crueldade. Para santo Agostinho e para o Génesis nascemos com o estigma do pecado. O pecado do conhecimento? É interessante a volta que o filósofo Bento Espinosa lhe deu: não é o conhecimento que é a fonte dos pecados (isto é, das más paixões), mas a ignorância, essa, sim, fonte do medo e da submissão…

Saudade

A saudade é uma pura perda de tempo.
Pelos mortos não se tem saudade mas uma dor incurável.
Pelos vivos que não vemos há muito tempo
temos remorso porque não os reavemos.
Pelos amores passadiços não temos saudade alguma.
Lembrar é escrever na água.

De modo que a saudade é um sentimento vão.
O que importa é o que vem de novo
Uns olhos negros numa noite de lua cheia
ou uns olhos castanhos numa tarde sereníssima.
A vida, não a morte nem a dor.

Há-de o sol nascer amanhã
Há-de o cinzento ganhar cor.

sábado, 13 de março de 2010

Vampiros

Está na moda o Vampiro. Os adolescentes parece que adoram. Ignoro se nesse estádio de crescimento a sangria é uma etapa de um desenvolvimento normal e saudável. Mas vê-se que é um bom negócio. O sangue como espectáculo. Instalações, perfomances, filmes. Em lugar da sangria no Iraque, os vampiros. Em vez da Colômbia, onde se mata todos os dias um sindicalista, os vampiros. Pela guerra civil no Sudão (os crimes perpetrados pelo governo muçulmano que a China e os EU silenciam por conveniência) ninguém se interessa. Os adolescentes tãopouco. O que gostam é de vampiros. O vampiro é um simulacro das sangrias reais. Por isso são divertidos.

O lucro

Não deixa de ser curioso que se dá como adquirida a ideia de que a Tv do Estado, dita Pública, deve perseguir critérios de qualidade e respeito pelo espectador a que a tv privada não se obriga. Significa, portanto, que o privado não persegue finalidades educativas, pedagógicas ou de qualidade jornalística e estética; logo, a finalidade é o lucro; e esta conclusão não suscita controvérsia; aqui dá-se razão a quem não se cansa de afirmar, para quem não o ouve, que à economia privada, o mercado dito livre, só lhe interessa o negócio e qualquer meio (media) lhe serve. O Provedor, coitado, fica a falar para o éter. Quem for inteligente raciocina, compara, observa, e deduz que o capitalismo é o que é, exigir outra coisa é pura utopia. Sejamos optimistas: há sempre alguém que é inteligente.

sexta-feira, 12 de março de 2010

MÁQUINA

Percorrem circuitos em fraccções de segundo
sinapses instantâneas transportam a mensagem
fluxos, redes, estimuladores e inibidores,
teus passos ficaram registados na neve
o teu último olhar através da janela do autocarro
tuas palavras definitivas no hipocampo
um derradeiro olhar.
Substância física, compostos orgânicos,
as tuas mãos arrefecidas no aceno que não fizeste.
miragens, quimeras, traços.
As memórias não exprimem nada mais
senão fotografias sem moldura.
Uma mera avaria no mecanismo
e nem saberia quem sou.

Um sonho.
Nada mais que um sonho.

quinta-feira, 11 de março de 2010

O Entrevistador

Ele é tudo menos uma entrevista. Ele é tudo menos um entrevistador. Não busca a empatia, o diálogo, o deixa-falar que depois nós concluimos. Ele é o que opina sobre tudo, desde a composição do átomo até à evaporação dos líquidos. Ele fala depressa, porque não pergunta, não se interroga, não estimula. Ele julga-se mui inteligente, sabedor, definitivamente sem controvérsia. Ele amarra o entrevistado, corta-lhe o raciocínio, decepa-lhe o argumento, liquida a pedagogia. Ele é insuportável. Sobre os professores já proferiu as maiores besteiras. Ele é «Os Sinais de Fogo». Fogo...em vez de dizer outro f.

COSTA MARTINS

Morreu Costa Martins, capitão de Abril, governante revolucionário, ministro do Trabalho, ministro da classe operária, militar honrado, alvo dos ódios (e medos) dos contra-revolucionários, da escumalha da extrema direita e de todos os fascistas que se abrigaram no guarda-chuva do PS de Mário Soares. As lutas contra a ditadura fascista, os combates de Abril, tiveram os seus heróis. Ele foi um deles. Neste Portugal triste e desorientado que o capitão de Abril não fique esquecido e que seja uma referência, uma memória que acalente a esperança, a luta sem tréguas.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Denis Diderot

Denis Diderot nasceu em Langres no dia 5 de outubro de 1713; faleceu em Paris no dia 30 de Julho de 1784. Foi um dos filósofos de que mais gosto, não só pela seu pensamento filosófico analítico fino e arguto, como pelo seu talento enorme como ficcionista. Na filosofia destaca-se na organização da Enciclopédia, juntamente com o matemático D'Alembert, à qual dedica boa parte da sua vida, mesmo depois de D'Alembert haver abandonado tão grandioso empreendimento. As suas «entradas» para a Enciclopédia são memoráveis, a sua capacidade de trabalho e de angariação de colaboradores, entre os melhores espíritos da sua época, é extraordinária. «O Sobrinho de Rameau» é um escrito dos mais originais e profundos da modernidade (apenas foi publicado algumas dezenas de anos após a sua morte e tornou-se depressa uma obra de referência), crítica, mordaz, céptica, inovadora na construção dos diálogos e do narrador «Je». «O Suplemento à viagem de Bougainville», por sua vez, é uma ficção pioneira no tema da comparação entre os «selvagens» do Pacífico Sul e dos europeus, na qual os primeiros fazem figura de um saber viver mais feliz e adequado à natureza (uma lição sempre actual); é admissível que este livrinho magistral possa haver influenciado a visão utópica das ilhas dos mares do sul que veio a marcar profundamente gerações posteriores de artistas (o pintor Gauguin, por exemplo). «A Religiosa» é outro dos temas ousados que Diderot não receava enfrentar e, com toda a certeza, abriu caminho a toda uma literatura crítica da vida conventual. Enfim, «Jacques, o fatalista» é uma excepcional narrativa entre a filosofia e a literatura, contendo no seu interior uma das mais belas e enigmáticas histórias da ficção moderna (adaptada no século passado para o cinema e para o teatro).
Denis Diderot, no plano filosófico, foi influenciado por Bento Espinosa (ou por um certo neo-espinosismo) e um materialista em filosofia.As suas teses sobre o «vitalismo» continuam a merecer um renovado interesse.

Ó homem, observa-te no infinito e perde a tua arrogância provinciana!

terça-feira, 9 de março de 2010

O PEC do grande capital

Títulos de vários jornais anunciam que o PEC apresentado pelo Governo vai «esmagar a classe média». Seria conveniente acrescentar que vai cortar nos subsídios de desemprego, penalizar as pensões de milhares de cidadãos que não pertencem à «classe média», e outras medidas gravosas sobre as prestações sociais, assim como congelamento dos salários da administração pública, com efeitos automáticos sobre os salários nas empresas privadas. Ou seja, vai «esmagar» todas as classes sociais, excepto a classe dominante, se é que me faço entender com esta expressão.

domingo, 7 de março de 2010

O SALÁRIO

Há poucas coisas sagradas neste mundo. A primeira são as crianças, os anjos, os inocentes. Entre as demais que entendermos fica o salário. O salário é a retribuição a quem trabalha. É a justíssima e necessária reprodução da força de trabalho. É o sustento do trabalhador, do homem e da mulher, é o sustento e a educação dos filhos. Dar a cada um o que cada um merece é a justiça. Aquele que dá um salário a outro não o dá: compra-lhe a força de trabalho e arrecada os excedentes, três partes para si, uma para o produtor, o empregado. Outrora o plebeu pagava a dízima, agora o empresário paga uma décima pelo produto das horas de trabalho. Outrora o senhor expulsava o plebeu da terra quando o imposto não vinha. Hoje o senhor expulsa-o da empresa sem salário. A terra não pertencia ao servo, a empresa não pertence ao produtor. Mas o salário pertence-lhe por direito absoluto. Não pagar o salário devido é um duplo roubo, pois que no salário já há roubo. Congelar os salários é uma fraude. Congelar os salários dos pobres trabalhadores para elevar os lucros é um saque,esbulho, falcatrua. O salário é um roubo, não pagá-lo é um crime.
Para dar o exemplo os senhores políticos e economistas que aconselham o congelamento dos salários para poupar nas despesas deviam ficar sem salário um ano, talvez dois. Os empresários sem mais-valia. Os banqueiros sem lucros.
Talvez então lhes ficasse bem irem a Fátima pedir perdão.

Perguntas

A jornalista de serviço pergunta ao general comentador: «A elevada participação dos iraquianos nestas eleições prova que eles desejam a democracia?». Respota:« Não será bem  isso que diz, o que eles querem é ter uma palavra na condução do seu país». Boa resposta. De que democracia falava a jornalista de serviço? É por estas perguntas que se vê o que pensam os jornalistas de serviço. Isto é, não pensam. Pensam o que outros lhes dizem. A propaganda do Bush e da norte-américa ficou. O que os iraquianos querem é o que sempre quiseram.

Interrogações do professor Ramos



1. Devemos aplicar o preceito «carpe diem» (goza cada dia) no sentido hedonista (só o prazer imediato vale)? O filósofo grego Epicuro, que o criou, não era um puro hedonista, era, sobretudo, um eudemonista (procura da felicidade possível). No seu preceito estava contido um ideal de serenidade pessoal que só se alcança pelo domínio das paixões funestas para o indivíduo, pelo cultivo das boas, como a amizade, a convivialidade, o intercâmbio de ideias, a comunicação inter-subjectiva tão racional quanto possível entre interlocutores que desejam atingir realmente um acordo. O seu preceito não era um postulado a priori, mas um resultado de uma filosofia do mundo e da vida que valorizava a natureza como fonte e composto originário do homem, a racionalidade sobre a irracionalidade, a liberdade sobre a escravatura, a comunidade sobre a multidão de egoísmos, o poder da vontade sobre a fatalidade, a alegria do viver sobre o pessimismo da morte. Carpe diem: não vivas torturado pelo medo da morte e da fatalidade, pelo medo que as religiões incutem, pela submissão que os tiranos impõem, pelo ódio ao corpo e aos prazeres terrenos.


2. É a vida que determina a consciência, não é esta que determina a vida. É a natureza que nos dá a vida ou a morte, foi nela que se gerou a espécie humana, ela é o nosso corpo, o cérebro que determina o pensamento, o viver com os outros que determina o que somos. E quando a consciência impele à acção sobre o viver, a natureza, a sociedade, não abandona nunca a sua natureza primeira.


3. Individualmente considerado o pensamento não existe separado do corpo e da matéria: da natureza e da exterioridade e coercitividade das regras sociais. O pensamento é uma propriedade da matéria, o seu desenvolvimento depende das experiências e relações sociais concretas. Educa-se o corpo e a mente, tal como aprendemos as propriedades da matéria.


4. Biliões de anos separam a humanidade da formação da Terra e da Vida. Porque haveria o espírito humano de ser anterior? Sendo o nosso planeta apenas um planeta médio perdido em biliões de enxames e galáxias onde incontáveis estrelas e seus planetas se movem e colidem, porque haveria de ser o nosso o planeta escolhido por um Espírito criador? Todas as religiões tiveram o seu povo eleito…

Simplesmente

É simples olhar e não ver


É simples ouvir e não se escutar






É simples dar uma ordem:


Lavam-se as mãos.






Correm rios de sangue e lama:


Sobrevoa-se de avião.


Fuzila-se um homem:


O país é demasiado longínquo.


Despedaça-se uma multidão:


Um simples engano.


Financia-se um golpe:


Debita-se na conta.


É simples fabricar uma mentira:


Resulta sempre.


É simples pagar um almoço:


A alma serve-se no prato.






Difícil é virar tudo do avesso.


Tornar impossível


Aquilo que vos parece tão simples.


São precisos muitos ódios


Para gerar um grande amor.

sábado, 6 de março de 2010

NA HORA DA NOSSA MORTE (Novela, cont.)



DIÁRIO DE MARTA -18


Há tanto tempo que não passeava! Não o fazia antes da morte da Gisela, por falta de tempo, de oportunidade, o serviço no hospital e a educação da minha filha ocupavam-me sem folgas, dizendo melhor: folguedos; não o fiz depois da sua morte, este ano e meio que já passou. Faço-o agora, com o Nuno, ele gosta de passear e eu necessito de me distrair das dores que trato no hospital e da dor que me persegue, agora mais calada e contida. O Nuno é jovem, o que quer é borga, boémia, eu sei e aceito, alinho e gosto. Conversas ligeiras e fúteis que me instalam no presente. Deambular nos Centros Comerciais que antes detestava e que hoje me fazem sentir comum, quero ser comum e vulgar e anónima. Olhar para as montras, entrar nas lojas, imagine-se! Precisamente o que não fazia parte do meu universo…Compro roupas para mim e para ele, ofereço-lhas, visto-o, sem reservas. Eu sei. Pressinto que esta relação é a prazo, um dia destes vai terminar e da pior maneira, mas construo uma cúpula de vidro à minha volta, protectora, transparente, uma doce e suave ilusão. Passeamos, comemos aqui e acolá onde nos apetece, pernoitamos em hotéis e pensões, desde a costa vicentina à Estremadura. Esta semana percorremos São Martinho do Porto, de que tanto gosto, fotografamo-nos defronte da bonita baía, dos barquitos em repouso, hospedámo-nos numa pensão acolhedora, fizemos amor entre brejeirices e fantasias. Em Torres Vedras subimos ao Varatojo, mostrei-lhe o convento de Santo António, que data de 1470,aì soube que nele se recolheram D.João II e D. Leonor, depois da morte do filho, com toda a certeza para sofrerem e fazerem o luto, como os compreendo! Eu que ainda não encerrei o luto pela Gisela…Subimos a seguir a outra colina ao Forte de S. Vicente, e imaginámos (talvez somente eu tenha imaginado, que sabe o Nuno disso?) a batalha fratricida e sangrenta entre os cabralistas e os setembristas em 1846. Descemos, cruzámos a estrada nacional, seguimos por estradas municipais e visitámos os vestígios do castro do Zambujal, do período calcolítico, mais de quatro mil anos nos contemplam aquelas pedras robustas que guardavam a vida quotidiana de uma povoação de artesãos primitivos. Tomámos depois a estrada para Santa Cruz, o oceano, as praias tão arenosas e tão brancas, descalçámo-nos a rir como petizes e atravessámos o arco do penedo do Guincho, as gaivotas em voo rasante aos gritos na sua faina interminável. Que belas são estas praias! Como é agradável calcorreá-las com os pés nus, sentir a viscosidade das algas verdes e espumosas! Regressámos pelas Termas do Vimeiro, percorrendo vagarosamente a estrada que bordeja o rio Alcabrichel.

Uma única mancha nestes passeios, nestas festas de amor: os constantes sms que o Nuno recebe e não comenta comigo, os telefonemas que ele não atende, que finge não ouvir. Pergunto-lhe e ele responde com palavras evasivas, é a minha mãe que não me larga! Diz ele, porém não acredito. Esse algo escondido da vida dele ensombra as horas em que estamos juntos, ensombra as noites em que não estamos juntos. Quem será? O ciúme é um veneno que se toma se quisermos, na dose que a paixão exigir. Felizes dos que não têm ciúmes.

sexta-feira, 5 de março de 2010

CONFISSÃO


Bem que eu não saiba história, ou muito pouca, sou o autor destas páginas.
Tudo me aconteceu desde o princípio.
Sou o protagonista,
a vítima, o culpado, o carrasco.

Sou o que olha e o que actua.
As idades descansaram em mim.
Os dias foram meu alimento.
As ideias, minhas asas,
meus punhais.

Pelo vazio de minhas mãos passou
o rio das armas.

Meus olhos são os fornos em que ardeu
a criação inteira.

Meu canto é o silêncio.

Homem, mulher, criança, ancião,
cada gesto meu treme nas estrelas
atravessando o tempo irrepetível.

Eu sou. Não busquem outro,
não torturem outro,
não amem outro.

Não tenho maneira de escapar.

CINTIO VITIER ( n. 1921)
trad.: José Bento.

quinta-feira, 4 de março de 2010

OUTRA VEZ CUBA

A notícia da morte de um prisioneiro em Cuba é relevante, sob a avalanche de notícias diárias, por dois motivos relacionados: primeiro, porque as agências de notícias não apenas empolam o caso (relativamente a outras notícias) como o apresentam já interpretado, o que não sucede sempre com as notícias, isto é, o acontecimento demonstraria, segundo essas fontes, a malignidade do regime cubano; se as notícias fossem sempre interpretadas com a mesma coerência então os milhares de assassínios perpetrados pelos EU no Iraque e no Afeganistão (incontáveis civis mortos por «erros») seriam apresentados precisamente como assassínios e os EU como um império maligno (Lembre-se Guantánamo e as torturas nas prisões no Iraque). Segundo, porque do prisoneiro que faleceu em greve de fome, lamentável a todos os títulos, não somos informados dos motivos da pena a que estava condenado, nem ouvido qualquer governante cubano. Deste modo ficamos sem saber qual a atitude a tomar: foi abandonado à sua sorte? foi desleixo grave dos serviços prisionais? a pena a que foi condenado deve-se exclusivamente a um «delito de opinião»? Não sabemos. Apenas podemos duvidar que o falecido e outros presos o sejam por mero «delito de opinião», pois que a Constituição da República cubana, tanto quanto sabemos, não proibe a expressão das opiniões. Seja como for o que nós temos direito é a uma informação cabal e completa. Transmitir metodica e sistematicamente notícias tendenciosas sobre Cuba e acusar esta de proibir o direito à informação e à livre opinião, parece-me no mínimo incongruente. A mim provoca-me desconfiança e até alguma repugnância. Deixem Cuba explicar-se e deixem-nos tirar as conclusões.

segunda-feira, 1 de março de 2010

NA HORA DA NOSSA MORTE (novela, cont.)

DIÁRIO DE MARTA -17


Faz do meu corpo o que quer. Eu sou sua, sou objecto e sujeito. Desperta-me as sensações mais adormecidas, ignoradas. Regresso aos primórdios da humanidade. Solto-me sem freio, sem vergonha e sem remorso. O meu corpo sofrido é agora espuma, nuvem, nenúfar, taça por onde bebe dos meus sentidos. Tão jovem e tão hábil…A quantas já exerceu a sua antiquíssima medicina? Com quantas aprendeu? Até quando, Nuno, até quando?

DIÁRIO DO PROFESSOR RAMOS -7

Não durmo, chamo o sono e ele não vem, deixa-me de olhos abertos na solidão silenciosa de quatro paredes, Quando chegará a notícia? Exames e mais exames, a ansiedade corrói os minutos e as horas, ninguém me acode, ninguém sabe porque a ninguém conto, percorro a pé todos os caminhos do meu lugar, o cérebro esforça-se por instilar coragem ao corpo, mas o corpo é a mente, não são duas forças opostas, é um único organismo dividido, se eu morrer, quando eu morrer, nem uma ruga na pele do mundo, nada verá perturbado o seu curso, nada, não verei o curso da Revolução, não saberei se esta revolta social que abala os alicerces da sociedade se transformará em Revolução, e se esta triunfará sobre a reacção que já se organiza, nasci sob o fascismo, morrerei sob o Novo que se anuncia, e serei um nada, um punhado de moléculas e átomos que se dispersarão sem memórias. Coisa nenhuma.

A espuma das palavras

A babugem do mar

Restos, ruínas, pegadas,

O vento nas dunas a chorar.

FRANCIS BACON

Viagem à Polónia

Viagem à Polónia
Auschwitz: nele pereceram 4 milhôes de judeus. Depois dos nazis os genocídios continuaram por outras formas.

Viagem à Polónia

Viagem à Polónia
Auschwitz, Campo de extermínio. Memória do Mal Absoluto.