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segunda-feira, 15 de março de 2010

NA HORA DA NOSSA MORTE ( Novela, cont.)

DIÁRIO DO PROFESSOR RAMOS – 8


Já as roseiras ganham folhas no meu quintal, emergem os lírios dos tubérculos. a salsa reverdeje jovial, as alfaces tentam os coelhos bravos, as camélias enlouquecem em súbitas labaredas, piso a terra e sinto-me novo, sessenta anos de história que a primavera rejuvenesce, acaricio esta e aquela folha, sossego este e aquele caule, pressinto-lhe a seiva, os dias solarengos espantam a humidade nos ossos, fiz as análises de rotina, o que vier a ser é o que será, tive dias em que me senti morto, tive outros em que me senti vivo, chorava com facilidade quando era petiz, desaprendi o choro, chorei por ti quando partiste, chorei por mim porque toda a partida é injusta, para um ou para o outro, sempre injusta, chega o ciúme, abandona-nos o juízo, ontem recordei as minhas primeiras férias ao pé do mar, uma colónia de crianças, um tostão semanal, dava para um gelado, apenas um, um cone ou um barquito de massa com o creme gelado por cima, delicioso, surpreende que algumas lembranças fiquem claras e nítidas para sempre, outras não, desvanecem-se, nem segredos são, apagaram-se por qualquer razão obscura, o meu primeiro beijo, ambos da mesma idade, sete anitos, a exploração dos corpos, tu tens uma coisa que eu não tenho, no jardim largo de uma casa apalaçada, somente esse instante permanece, de nada mais me lembro, vou ao pão a pedido de minha mãe, na estrada um carro da polícia, daqueles antigos de cuja marca e cor já não lembro, talvez mais alguns homens, não sei, e um outro, algemado, riscam-se uns traços a giz no asfalto, oiço conversas dos mirones, aquele homem matou outro, esfaqueou-o por ciumeiras, fiquei com certeza fortemente emocionado, sete anos de idade, um homem matou outro, como é possível? Pura ingenuidade, o Mal é ainda desconhecido, naquela idade faz-se a pergunta capital: porque motivo se mata os homens uns aos outros? Vimos a morte por doença ou acidente, aceitamo-la, o assassínio não, não existia televisão, que revolução mental trouxe ela sobre as crianças? Contavam-nos histórias para crianças de arrepiar, bruxas horríveis, madrastas cruéis, metíamos sustos uns aos outros com visões de fantasmas e mortos vivos, recusávamos passar ao pé de cemitérios, porém o homicídio autêntico impressionou-me, até hoje. O que é o Mal? O filósofo Tomás Hobbes afirmou que no estado de natureza somos egoístas e maus, o homem é o lobo do homem, somente através de um contrato comum decidimos alienar essa liberdade má em favor de regras, a civilização domestica, no sentido literal, dá-nos um lar, uma família, uma propriedade individual, um soberano que proteger-nos-á. Jean- Jacques Rousseau, cem anos mais tarde, recusará esta tese: todo o homem nasce livre e igual em direitos, o selvagem é inocente e bom, não é egoísta mas cooperativo, compassivo e solidário, é a civilização que o perverte, corrompe, transforma-se em hipócrita, astuto, egoísta, cúpido e vaidoso, perde o amor-próprio com que nasce, ou transforma-o em orgulho e o orgulho em crueldade. Para santo Agostinho e para o Génesis nascemos com o estigma do pecado. O pecado do conhecimento? É interessante a volta que o filósofo Bento Espinosa lhe deu: não é o conhecimento que é a fonte dos pecados (isto é, das más paixões), mas a ignorância, essa, sim, fonte do medo e da submissão…

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