DIÁRIO DO PROFESSOR RAMOS -10
Chegou a primavera, o céu não canta louvores ao Senhor, mas as andorinhas regressam aos seus ninhos, sempre os mesmos casais, sempre os mesmos ninhos, perpétua repetição da natureza, quantos enigmas no instinto dos animais, buscamos enigmas nas palavras quando há outros à frente dos nossos olhos, não os apreciamos, o que dizemos captura-nos, eu disse “Chegou a primavera!”, o nome é um signo convencional, outras línguas outros signos, porém o que observo é idêntico, ainda que a paisagem seja diferente, o ciclo repete-se, sejam embora diferentes os significados o sentido é similar, as roseiras ganham folhas, os botões fechados, adormecidos, incham grávidos da flor que desponta, a morte do botão é a vida da flor, o processo é interminável, das sementes que a flor morta abandonou brotará a mesma espécie, é a lógica da vida, uma lógica objectiva que rege os processos naturais, quer eles sejam completamente diferentes ou não, a lógica que rege a linguagem sobre jaz a outras lógicas naturais, mais determinantes, imutáveis a não ser que o ambiente as destrua, extingam-se todas as rosas, permanecerão outras espécies de flores, porque razão a lógica da linguagem humana haverá de preencher toda a filosofia, as linguagens da natureza são tantas e várias…Reduzir-se-ão todas à mesma linguagem, à mesma lógica? «Deus ou a Natureza», Espinosa resumiu numa fórmula o Todo. Soubesse ele que nem o Todo é eterno, que o que perpetuamente se repete não se repete sempre da mesma maneira, que o que é agora nem sempre o foi, a certa altura não existiu, a certa altura deixará de existir.
(Escuto o Concerto para piano nº1, de Tchaikovsky, e penso que o mundo e a vida têm múltiplos significados e apenas dois sentidos. Os significados somos nós que lhos emprestamos. Não vejo a Marta há meses. Porque atribuo tanto significado à Marta? Pelos seus olhos castanhos e húmidos, pela sua voz entrecortada de pausas e silêncios?)
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