José Luís Fiori expõe sua hipótese sobre o poder global
Na entrevista em que narra sua trajetória, ele conta como chegou a uma concepção particular sobre a formação e dinâmica do sistema capitalista. Seu impulso não viria dos mercados, mas de uma tendência incontível à guerra e à conquista
Entrevista a Gilberto Bercovici e Luiz Felipe Osório, em Margem Esquerda | Imagem: John S. Sargent
Na sua tese de professor titular, “Instabilidade e crise do Estado na industrialização brasileira”, de 1988, você faz uma análise do processo de industrialização brasileiro, falando inclusive dos “sonhos prussianos” de parte dos nossos dirigentes. Após ter constituído um parque industrial relevante, a política adotada no país a partir de 1990 foi a da desindustrialização. Como você explicaria isso? Nossos sonhos prussianos foram abandonados de vez e nosso atraso deixou de ser uma vantagem?
Esta é uma questão fundamental em toda discussão a respeito do desenvolvimento capitalista brasileiro e seu bloqueio a partir da década de 1980. E é sem dúvida um ponto central que está presente na minha tese de doutoramento e que reaparece na minha tese de professor titular defendida em 1989. Até a década de 1980, os “sonhos prussianos” de alguns setores militares (sim, porque também entre eles sempre houve liberais e desenvolvimentistas, apesar de quase todos defenderem o alinhamento automático com os Estados Unidos, em termos estratégicos internacionais) e de parte da elite política puderam conviver com o liberalismo da outra parte das mesmas elites e do mesmo empresariado brasileiro, graças ao apoio estadunidense ao projeto desenvolvimentista e às condições financeiras criadas pelos Acordos de Bretton Woods.
Mas, como já dissemos, essa aliança foi “estrangulada” na década de
1970 pela mudança da estratégia econômica internacional dos Estados
Unidos, que reduziu a margem de manobra interna da “política
macroeconômica desenvolvimentista” dos governos militares. Primeiro, os
“sonhos prussianos” do general Geisel entraram em conflito com a
“intolerância hemisférica” dos Estados Unidos; depois, seus sucessores
perderam espaço de manobra macroeconômica com a desregulação dos
mercados financeiros globais e o fim da “proteção de Bretton Woods”.
Ainda
sobre a industrialização, você chegou a afirmar que o financiamento
internacional da siderurgia pesada no Brasil, opção tomada graças à
resistência do empresariado nacional e à escassez de recursos próprios,
teria marcado a impossibilidade de qualquer industrialização realmente
autônoma no país. A falta de articulação entre Estado e empresariado,
vetada pelas elites econômicas brasileiras, teria condicionado a
industrialização brasileira a um desenvolvimento associado ao capital
internacional, não sendo um projeto efetivamente nacional. Você continua
entendendo o processo de industrialização brasileira desse modo? Houve a
possibilidade de um processo realmente autônomo?
Acho que o problema não foi falta de articulação entre o Estado e o empresariado brasileiro. Sempre houve militares e empresários que sonharam com algum tipo de “capitalismo de Estado” à brasileira, mas sempre houve também um número bem maior de militares e empresários liberais e ultraliberais que se opuseram a esse projeto. Foi esse grupo liberal que acabou vetando e derrotando internamente o projeto do governo Geisel de transformar o Brasil numa potência intermediária, e essa facção interna do próprio governo Geisel aproveitou para “saltar do barco” no momento em que o governo estadunidense tirou seu apoio internacional ao regime militar brasileiro, menos por conta do seu autoritarismo e mais por conta do seu veto à autonomização estratégica do Brasil.
Muitos autores da época falaram de um “tripé” para caracterizar o modelo de desenvolvimento brasileiro, mas a verdade é que esse tripé esteve presente em quase todos os casos de desenvolvimento capitalista depois da Segunda Guerra Mundial. Contudo, nos anos 1970-80 esse “tripé” acabou sendo inviabilizado, pelo lado econômico, exatamente porque os “ortodoxos” forçaram o financiamento do II PND por meio do endividamento externo, que na época estava barato, só que essa dívida explodiu depois da subida da taxa de juros estadunidense em 1979.
Muitas coisas mudaram no Brasil nas últimas décadas, mas essa
estrutura básica dos interesses e das posições ideológicas segue sendo
muito parecida. O desenvolvimentismo perdeu apoio internacional, e a
abertura do mercado financeiro brasileiro realizada pelo governo FHC na
década de 1990 liquidou de vez qualquer possibilidade de retomar o
arranjo dos anos 1950-60. E esse é o grande bloqueio que o Brasil
enfrenta hoje, parecido com o que a Argentina vem enfrentando desde os
anos 1950. O projeto neoliberal não tem a menor possibilidade de dar
conta do desafio de uma sociedade tão terrivelmente grande, desigual e
miserável como a brasileira, e o projeto desenvolvimentista clássico, ou
de um capitalismo de Estado mitigado, não conta com o apoio
estadunidense, além de ter o veto da burguesia financeira nacional, que
adquiriu enorme poder depois dos anos 1990.
É notória e profícua sua parceria com a professora Maria da Conceição Tavares. Em entrevista à esta Margem Esquerda,
ela mesma confirmou a importância da interlocução intelectual entre
vocês.7 Ela lembrou o episódio de quando vocês se conheceram no Chile,
das discordâncias iniciais e da posterior complementação das ideias –,
sendo que ela com a economia política e, você com a sociologia, a
história e a ciência política. Como se deu essa parceria intelectual que
envolveu, ao mesmo tempo, uma amizade fraternal?
De fato, conheci Conceição Tavares em Santiago do Chile, em 1968, e depois fui seu aluno na Escolatina da Universidade do Chile, mas sobretudo fomos sempre grandes amigos, uma amizade fraternal que se estende até hoje. Ao mesmo tempo, sempre tivemos uma interlocução intelectual extremamente profícua. Primeiro, acompanhando a experiência política chilena, depois, no Brasil, onde assistimos e muitas vezes participamos da luta pela redemocratização brasileira. Do ponto de vista propriamente acadêmico, creio que nossa parceria esteve estreitamente associada à criação da pós-graduação do Instituto de Economia Industrial da UFRJ, na primeira metade dos anos 80, e posteriormente, à criação do programa de pesquisa no campo da economia política internacional que montamos com outros colegas no período em que ela foi diretora do Instituto de Economia Industrial da UFRJ.
A pesquisa começou em 1986 e nos levou à Europa, Ásia e Estados Unidos, onde pudemos estudar as transformações econômicas e geopolíticas que começaram com a crise da década de 1970 e culminaram com o fim da União Soviética e da Guerra Fria e com o grande avanço da globalização financeira dos anos 1990, sob a batuta do poder militar global estadunidense. E hoje estou convencido de que a grande originalidade do nosso novo programa de pesquisa, naquele momento, no campo da economia política internacional, foi a de juntar duas questões que apareciam inteiramente separadas nos debates acadêmicos da época: a “crise do desenvolvimentismo brasileiro” e latinoamericano e a “crise e retomada da hegemonia estadunidense” dos anos 1970-80. E esse passou a ser o tema dominante das nossas tertúlias intelectuais nas décadas seguintes.
Essa releitura da conjuntura internacional foi o pontapé inicial
da pesquisa mencionada na pergunta anterior, e que reuniu vários
professores da UFRJ e da Unicamp, que trabalharam juntos durante vários
anos, culminando na formação, em 2008, do Programa de Pós-Graduação em
Economia Política Internacional, no Instituto de Economia da UFRJ.
Na
sua concepção teórica, você aponta para elementos centrais como
tendência expansiva e internacionalizante dos capitais, hegemonia,
imperialismo, sistema interestatal capitalista, poder e riqueza. Em
quais pontos você se aproxima de Marx ou das teorias marxistas em geral e
em quais momentos você se afasta? O conceito de imperialismo, central
na leitura marxista, influencia sua obra? Como?
Acho que
se pode dizer, sem medo de errar, que as teorias do imperialismo do
início do século XX foram as grandes precursoras da atual economia
política internacional, que só se assumiu como disciplina acadêmica nas
últimas décadas do século passado, em particular no mundo acadêmico
anglo-americano. É óbvio que elas exerceram grande influência sobre
minhas ideias e pesquisas no campo internacional. De qualquer forma, o
deslocamento da minha reflexão para o campo do “poder” e suas várias
formas de organização e expansão só se deu a partir da publicação do meu
ensaio “Formação, expansão e limites do poder global”, no livro O Poder Americano
que organizei e editei em 2004, na Coleção Zero à Esquerda, liderada
pelo professor Paulo Eduardo Arantes, na Editora Vozes. E, em
particular, no prefácio do meu outro livro O poder global e a nova geopolítica das nações,
onde acho que realmente formulei as bases da minha nova visão do
sistema de poder mundial. Creio que foi aí, depois da formulação do que
chamei de “paradoxo de Petty”, a respeito da origem do “excedente
econômico”, que comecei minha leitura da história do sistema
interestatal capitalista, de forma autônoma com relação à economia
política clássica e à teoria do imperialismo.
Considero que foi
só então que consegui definir meu enfoque pessoal de pesquisa, dentro da
economia política internacional. Um enfoque que parte do conceito de
“poder” como uma “energia que se expande a partir de si mesma”, para
chegar a deduzir algumas hipóteses sobre a dinâmica de todo “poder
territorial”, em particular, do poder dos “Estados e economias
nacionais” que se transformaram na unidade competitiva e motora do
sistema interestatal capitalista. Um sistema que funciona como uma
espécie de máquina de acumulação de poder e riqueza e que se expande de
forma contínua sem nenhum tipo de telos, ou de destino necessário ou
predeterminado.
Foi a partir dessas hipóteses que me debrucei
sobre a história de longo prazo de formação e desenvolvimento do sistema
interestatal capitalista, começando pelas “guerras de conquista” e pela
“revolução comercial” que ocorreram no continente europeu nos séculos
XII e XIII, para chegar até a formação dos Estados e economias nacionais
europeias e o início da sua vitoriosa expansão mundial, a partir do
século XVI. Como é sabido, na Europa, ao contrário do que aconteceu nos
impérios asiáticos, a desintegração do Império Romano e, depois, do
império de Carlos Magno provocou a fragmentação do poder territorial e o
desaparecimento quase completo da moeda e da economia de mercado entre
os séculos IX e XI. Nos dois séculos seguintes, entretanto – entre 1150 e
1350 –, aconteceu a grande revolução que mudou a história do continente
e do mundo: forjou-se uma associação indissolúvel e expansiva entre a
“necessidade da conquista” e a “necessidade de produzir excedentes” cada
vez maiores, que se repetiu, da mesma forma, em várias unidades
territoriais soberanas e competitivas, que foram obrigadas a desenvolver
sistemas de tributação e criar suas próprias moedas para financiar suas
guerras de conquista. As guerras, os tributos, as moedas e o comércio
existiram sempre, em todo tempo e lugar; a grande novidade europeia foi a
forma como se combinaram, somaram e multiplicaram em conjunto, dentro
de pequenos territórios altamente competitivos e em estado de permanente
preparação para a guerra. Na Europa, a preparação para a guerra e as
guerras propriamente ditas se transformaram na principal atividade de
todos seus “príncipes”, “feudos”, ou outras formas de “poder
territorial”, e a necessidade de financiamento dessas guerras se
transformou num multiplicador contínuo da dívida pública e dos tributos.
E, por derivação, num multiplicador do “excedente”, do “comércio”, do
“mercado de moedas” e dos “títulos da dívida”, produzindo e alimentando –
na Europa
– um circuito acumulativo absolutamente original entre os processos de acumulação
de poder e riqueza.
Mas só depois que compreendi plenamente o “paradoxo do Petty” é que
ficou claro para mim que era logicamente impossível explicar o
aparecimento da “necessidade europeia” de acumulação de um “excedente”
cada vez maior apenas a partir do “mercado mundial” ou do “jogo das
trocas”. Como escrevi naquele momento, mesmo que os homens tivessem uma
propensão natural para trocar – como pensava Adam Smith –, isso não
implicaria necessariamente que também tivessem uma propensão natural
para acumular lucro, riqueza e capital. Ou seja, do meu ponto de vista, a
verdadeira força expansiva que acelerou o crescimento dos mercados e
produziu as primeiras formas de acumulação capitalista não veio do “jogo
das trocas” ou do próprio mercado; veio do “poder”, da “conquista” e da
energia gerada pela “acumulação do poder”. E essa “energia” se manteve
ativa, central e decisiva, mesmo depois da constituição das relações de
produção “propriamente capitalistas” e mesmo depois da própria
industrialização.
Nos livros O poder global e A nova geopolítica das nações, de 2007, e, principalmente, em seu artigo no livro O mito do colapso do poder americano,
de 2008, você antecipa questões centrais na geopolítica mundial que com
o tempo vão se confirmando, como a manutenção instável, e ainda assim
crescente, do poderio americano, a ascensão da China e o retorno da
Rússia aos grandes palcos globais. Hoje estamos assistindo de novo a um
intenso debate sobre o fim da “ordem liberal americana”. Fora a
ansiedade de muitos analistas por um novo horizonte, que contamina a
frieza necessária ao teórico, como você entende a discussão? Em que
aspectos há diferenças e quais são os pontos de convergência dos dois
momentos?
Depois da contundente vitória americana na Guerra Fria e
na Guerra do Golfo, os EUA desfrutaram, durante uma década, da condição
de centro unipolar do poder global. Mas essa condição começou a se
alterar a partir do início do século XXI, quando eles iniciaram sua
“guerra global ao terrorismo” e se envolveram progressivamente numa
sucessão de guerras no Oriente Médio que já se prolongam há duas
décadas. Nesse período, os EUA foram também o epicentro de uma enorme
crise econômica que começou por seu sistema financeiro imobiliário, em
2008, e acabou atingindo toda a economia mundial. Mas foi na última
década, e mais particularmente nos últimos cinco anos, que o mundo vem
assistindo atônito à vertiginosa ascensão da China como potência militar
regional; à reconstrução acelerada do poder militar global da Rússia; à
fragmentação e ao declínio do poder global da União Europeia (UE),
junto com o ocaso da Grã-Bretanha como potência individual; além do
crescimento da presença miliar da Rússia e do Irã no Oriente Médio; o
afastamento da Turquia com relação aos seus aliados da OTAN; e, num
nível mais baixo de importância global, a “degringolada” internacional
do Brasil.
O mais surpreendente, no entanto, no período recente, foi o fato de
os próprios norte-americanos terem tomado a decisão de se afastar de
seus antigos aliados liberais, e de atacar de forma direta e agressiva s
valores e instituições da ordem internacional liberal que eles mesmos
haviam criado depois da Segunda Guerra, e haviam reafirmado depois do
fim da Guerra Fria. Entre 1989 e1991, o Ocidente festejou a vitória
definitiva da “democracia”, da “economia de mercado” e de uma nova
“ordem ética internacional”, orientada pela defesa dos “direitos
humanos”. Mas trinta anos depois, o panorama mundial mudou radicalmente.
A velha “geopolítica das nações” voltou a funcionar como a bússola do
sistema interestatal, o “nacionalismo” e o “protecionismo” voltaram a
ser praticados pelas grandes potências e os grandes “objetivos
humanitários” dos anos 90 parecem ter sido relegados a um segundo plano
da agenda internacional. Nada disto é prova suficiente do fim do poder
americano, mas sem dúvida, é a evidência de que o sistema internacional
está vivendo uma transformação geopolítica profunda, que entretanto, vem
sendo provocada, em grande medida, pela própria expansão do poder dos
EUA, que não foi interrompida mesmo nos anos “pacíficos” da década de
90.
O que os analistas mais “ansiosos” às vezes não tomam na devida conta é que, na expansão contínua do sistema interestatal “inventado” pelos europeus, a própria lógica competitiva do sistema impede que a “potência hegemônica” aceite o status quo que ela instalou através de suas vitórias. Por isso, quando se sente ameaçada, muitas vezes a potência hegemônica destrói as próprias “regras” e “instituições” que criou, mas o faz como estratégia de preservação do seu poder. Exatamente como ocorreu com os EUA em 1973, quando se desfizeram do sistema de Bretton Woods que haviam criado em 1944. E agora de novo estão se desfazendo das regras e instituições que criaram ou reafirmaram depois de sua vitória de 1991. Ou seja, ao contrário do que afirmam todas as teorias da “estabilidade hegemônica”, nesse sistema interestatal e capitalista que está em permanente expansão, nunca houve nem haverá hegemonia estável, porque se trata de um sistema e de uma liderança que precisam se expandir, e que por isso mesmo estão em permanente estado de guerra ou de “preparação para a guerra”.
Sem comentários:
Enviar um comentário