Rashid Khalidi: “Cada povo colonizado resiste e é isso que os palestinianos estão a fazer”
O professor da Universidade de Columbia Rashid Khalidi acha que apesar de altos e baixos, a situação na Palestina tem uma continuidade: e quer sublinhar a dimensão colonial de Israel (por oposição à nacional) nessa continuidade.
Numa altura em que a tensão regressa a Israel e aos territórios palestinianos, o professor e investigador na Universidade de Columbia Rashid Khalidi falou com o PÚBLICO por videochamada a propósito da edição em Portugal do livro Palestina: uma biografia – cem anos de guerra e resistência (Ed. Ideias de Ler).
Escreveu Palestina: uma biografia. Como vê a situação actual?
Penso que há mais continuidade do que mudança. O que o meu livro tenta argumentar é que tem havido uma continuidade há mais de cem anos no que se passa na Palestina. Dizer que há dois povos com a implicação de que estão em pé de igualdade é falso. Há dois povos, claro, mas não estão numa base de igualdade, e como isso aconteceu é essencial para perceber o ponto em que estamos hoje.
Como sou historiador vejo as coisas a mais longo prazo – um pouco mais de um século. E com esse foco torna-se muito claro que isto é parte de um processo através do qual a Palestina foi transformada em Israel. Alguns dos primeiros líderes do movimento sionista disseram isso: o nosso objectivo é transformar a terra da Palestina na terra de Israel. Isto foi feito também por forças globais. Isso não quer dizer que israelitas e palestinianos não sejam neste momento os protagonistas, claro que são. Não é o mesmo que dizer que não há dois povos – claro que há.
Mas...
Temos de perceber como é que a situação actual aconteceu, e por que é tão desequilibrada no presente e por que tem sempre havido desequilíbrio no passado. Israel tem tido muito sucesso a criar uma narrativa em que é a vítima.
Os palestinianos no seu próprio país eram mais fracos e muito menos organizados do que o projecto imigrante que tem um ethos nacional forte, que é bem financiado, é feito por pessoas cuja maioria tem formação, qualificação, contra uma população que era na maioria analfabeta e camponesa.
Hoje há uma soberania entre o Rio Jordão e o Mediterrâneo. Há um país, um exército, uma lei, um regime de entradas e saídas, que é o de Israel. Há um povo palestiniano sob ocupação. O que temos é uma solução de um Estado.
O que disse foi, em parte, usado por organizações (B’Tselem, Human Rights Watch, Amnistia Internacional) para dizer que Israel tem políticas de apartheid. Mas acha que ajuda? Como a definição de anti-semitismo servir para quem critica Israel. Não se acaba numa discussão de um lado a gritar apartheid e no outro anti-semitismo?
Vamos dividir isso em duas perguntas, uma sobre apartheid e outra sobre anti-semitismo. Há uma definição legal de apartheid, que requer alguém mais bem qualificado para julgar, como fizeram a Human Rights Watch ou a B’Tselem, por Israel ter dois sistemas de lei para dois grupos diferentes, definidos etnicamente.
Não sou advogado, sou historiador. Penso que todos os regimes coloniais de povoamento, que Israel começou por ser e que ainda é, têm regimes legais diferentes para a população indígena e para os colonos. A primeira colónia de povoamento britânica foi a Irlanda, e cito alguém do séc. XVI dizer que valia o mesmo para um inglês matar um irlandês do que matar um cão, ou seja nada. E no sistema israelita hoje podem ver-se semelhanças.
O que quer que a lei diga, de facto há dois sistemas legais. Um israelita é morto, é aplicada a força total da lei. Um palestiniano é morto, a lei basicamente ignora. Por isso, argumentaria que este é um sistema legal de colonialismo de povoamento.
É de algum modo semelhante ao apartheid, de outros modos pior, de outros muito diferente, e de outros, melhor: há deputados palestinianos no Knesset israelita, embora claro que não têm os mesmos direitos que os deputados judeus (que podem comprar terrenos ou aceder a serviços do Estado, por exemplo).
O objectivo foi sempre o de privilegiar um grupo sobre o outro.
Quanto ao anti-semitismo?
Um flagelo horrível, mas se virmos a perspectiva histórica, onde é que predomina o anti-semitismo no século XX? Não é na Palestina. Não tem nada a ver com Israel, nada a ver com árabes, tem a ver com a cristandade. Levou ao Holocausto, levou à expulsão de judeus há centenas de anos. É um fenómeno fundamentalmente europeu.
Agora, há vestígios disso por todo o mundo, é verdade. Mas comparar as objecções do povo palestiniano a ter a sua terra retirada a anti-semitismo é grotesco. É uma manobra para evitar ter de discutir os factos, que são incontroversos. Em termos históricos, foram derrotados: não há historiadores respeitados que acreditem nos mitos que Israel viveu durante gerações, durante e depois do estabelecimento do Estado, como dizer que os palestinianos saíram porque os seus líderes lhes disseram para sair.
Este e outros mitos costumavam ser muito poderosos na opinião pública, mas as pessoas já não acreditam: vêem uma superpotência nuclear que brutaliza os palestinianos, que bombardeou seis ou sete dos seus vizinhos nos últimos 30 ou 40 anos, não tem nada a temer no seu quintal e não está em perigo, excepto talvez de dentro. E por isso mudou-se o campo do debate.
Voltando a algo muito recente: a propósito da morte da jornalista da Al-Jazeera Shireen Abu Akleh notou que desde 2000 morreram 46 jornalistas palestinianos. Como seguiu este caso?
O Exército israelita investiga-se a si próprio constantemente, e não acontece nada. Um israelita é morto e abre-se uma investigação, demolem a casa da família, castigam a comunidade, vão muito além do que um sistema penal iria alguma vez permitir. Os israelitas nunca são castigados, ou se são, é um castigo leve.
Todos ouvimos falar do funeral de Shireen Abu Akleh, mas ninguém ouviu falar do funeral que aconteceu ontem [na semana passada] em Jerusalém, em que outro cortejo fúnebre foi atacado.
Os stormtroopers [soldados do Império ditatorial de Star Wars], com os seus capacetes, viseiras e armas, são aterrorizadores – é isso que os palestinianos enfrentam. Não são permitidos protestos públicos, levantar uma bandeira. E o castigo não é ser-se multado, é ser-se atacado, atingido por balas de borracha, gás lacrimogéneo, preso, torturado, agredido.
Uma das coisas de que falo no livro é que Israel herdou o aparelho de segurança do Estado colonial britânico, incluindo os procedimentos extra-judiciais, as regras de emergência que permitem todos estes abusos. A ilegalidade legalizada. São as leis que foram usadas contra militantes sionistas durante alguns anos depois da II Guerra Mundial e desde então contra os palestinianos.
O local onde a jornalista foi morta, Jenin, também é relevante: o palco de grandes confrontos durante a segunda Intifada...
Por isso é que Shireen Abu Akleh estava a cobrir essa história. Para os palestinianos, locais como este, em que conseguem resistir a esta guerra, são muito importantes.
Como digo no meu livro, a resistência tem sido um resultado inevitável da colonização. Cito o líder e pensador sionista mais influente, [Zeev] Jabotinsky, a dizer “o que fazemos vai inevitavelmente provocar resistência”. Cada povo colonizado resiste e é isso que os palestinianos estão a fazer desde o início desta guerra. Há vários tipos de resistência, política, parlamentar, os media, manifestações, o BDS [Boicote, Desinvestimento e Sanções], e alguma da resistência é armada, e Jenin é, entre outros, um centro da resistência armada.
Os poderes coloniais não só lutam contra os combatentes, castigam a população. É importante perceber Israel neste contexto. É um projecto colonial que é também um projecto nacional. Criou um Estado-nação tal como aqui: vivo em Manhattan, é um nome nativo americano, aqui criou-se um Estado-nação, tal como Israel. O povo israelita é moderno, mas mesmo assim, é desenvolvido a partir de um projecto colonial de povoamento, tal como os americanos, australianos, canadianos, etc.
Quando fala destes Estados, isso não acabou bem para os nativos. Mas numa entrevista disse que no fim de contas há dois povos num país muito pequeno e que será preciso fazer a quadratura do círculo. Como?
Depende do tipo de solução em que acabarmos. Se for uma solução do género “lei do mais forte”, consigo ver o statu quo projectado no futuro – um povo oprime o outro, e o outro resiste, permanentemente. É uma perspectiva terrível.
No livro, apresento algumas das que penso que devem ser as bases de pensar uma solução. E uma seria a igualdade total. ão pode haver alguém a ter uma coisa e outra pessoa não porque é palestiniana.
Se Israel tivesse sido criado num país sem ninguém a viver lá, não haveria problema. O problema está, como aponto no início do livro, e como um antepassado meu dizia: ‘Com o sionismo, em princípio, está tudo bem, os judeus são primos de árabes, todos antepassados de Abraão, percebo, mas este país tem um povo, que não será substituído, suplantado’.
Diria que é preciso também ter algum tipo de justiça reparadora. Não é possível ter justiça total, não é possível restituir todas as propriedades, etc., mas tem de haver alguma forma de reparação.
Não penso que o statu quo projectado no futuro seja sustentável, vai acabar por ter de se mover para destruir preconceitos, descolonizar. Isso é muito difícil de fazer: como se descoloniza os EUA? O Canadá? A população foi praticamente eliminada, mas ainda há nativos americanos, das “primeiras nações” no Canadá.
A população árabe de Israel e dos territórios que ocupa tornou-se há pouco tempo ligeiramente mais numerosa do que a população judaica. E há tantos palestinianos fora da Palestina como na Palestina, todos têm direito a justiça de reparação.
Se as pessoas se vêem como parte do povo judaico, também têm direitos. Mas esses direitos não podem ser dados à custa de outros.
Durante alguns anos houve realmente uma tentativa, um processo de paz. Agora há um impasse diplomático. Quais são as consequências?
Há um capítulo no meu livro que fala disto. Este impasse não é criado só pelos actores, mas também pelo actor mais importante no Médio Oriente que ainda são os Estados Unidos. Israel é dependente de milhares de milhões de dólares de ajuda americana e do veto americano no Conselho de Segurança da ONU, e no Governo dos EUA impedirem uma solução justa e duradoura. Estive envolvido em negociações com Israel, fui conselheiro da delegação palestiniana no início dos anos 1990, encontrámo-nos dez vezes. E foi muito claro que os EUA estavam a pôr o seu dedo na balança a favor de Israel (...)
in jornal PÚBLICO
29/05/2022
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