Sei onde poderia contactar com o Carlos, a Carla informou-me, esteve a prestar um trabalho ocasional na firma de arquitectos; foi aí, de resto, que o conheceu. Não me sinto ainda capaz de o procurar. Um destes dias em que esteja cheia de energia, optimismo, coragem. Aliás, se ele estivesse muito interessado já me teria encontrado no hospital onde trabalho, bastaria telefonar para lá a perguntar por mim. Bem bom seria, ajudar-me-ia a esquecer o Nuno, o apelo da carne ainda é muito forte, mais forte ainda a traição que me aplicou. Adiante.
DIÁRIO DE MARTA -23
Fiz ontem uma visita ao professor Ramos. Encontrei-o adoentado, enfraquecido. Evitou propositadamente explicar-me o que se passava com saúde dele; apesar disso, pôs-me tão à vontade que acabei por confessar-lhe o fracasso da minha relação com o Nuno, que ele, evidentemente, não conhece. Não me deu conselhos como é seu costume, narrou, antes, alguns acontecimentos amorosos funestos da sua vida, com distanciamento e sem amarguras. Factos, são factos, rematou. Não vale a pena chorar sobre o leite derramado. Muito embora hajam relações amorosas que se reatam, a regra geral é que quando chegam ao fim não há nada a fazer. É necessário conservar a lucidez suficiente para nos apercebermos de a coisa chegou ao seu termo, sem remédio. A tentação comum é substituir um parceiro por outro, com excepção daqueles que passam o resto da vida a bater com a cabeça nas paredes. Conservar a cabeça para entender a tempo, antes de cometer asneiras, que a oportunidade passou, que a experiência findou, que a luta pela reconquista não vale sequer o esforço.
DIÁRIO DE CARLOS -19
O meu projecto para o Centro de Cultura foi aprovado pelo Governo Regional (a Câmara Municipal preferiu que fosse ele a assumir os encargos). Não ser, assim, propriedade municipal, mas regional. Obrigou-me, tal transferência, a algumas alterações, será maior para albergar maior número de utentes e de valências. Ficará implantado num vasto espaço público, um espelho de água, arvoredo, canteiros, bancos para os mais idosos e para os casais.
A convulsão social continua. Instalou-se a anarquia. Desejo ardentemente que ninguém se lembre, nesta confusão sem controlo, de praticar estragos na minha ponte. Por ora, verifico com prazer que ela não é utilizada somente para trânsito, também pares de namorados escolhem-na para os seus idílios, e já observei até uma sessão de fotografia de um casamento, ali mesmo, por debaixo das abóbadas da ponte, todos felizes e contentes.
Vou visitar o professor Ramos. Desconfio que anda doente.
DIÁRIO DO PROFESSOR RAMOS- 12
Recebi as visitas da Marta e do Carlos. Decidi juntá-los em minha casa, por isso vou convidar ambos para o mesmo dia e hora, sem lhes comunicar a intenção. A minha doença agrava-se. Não tenho ninguém a quem deixar as minhas parcas heranças. Talvez venham a ser eles os meus herdeiros.
Gostava de ter saúde para participar nas lutas sociais que se desenrolam. Às vezes meto-me no carro e vou assistir. Por enquanto não vislumbro uma firme condução das lutas, parece, pelo contrário, uma absoluta anarquia. As forças repressivas –policiais e militares- não parecem controlar já a situação. Alguns poderosos já se pisgaram para o estrangeiro, os grandes dão à sola.
DIÁRIO DE CARLOS -20
Encontrei finalmente a Marta. Por acaso ou não, estava na casa do professor Ramos quando lá fui ontem. Está bonita, madura, menos rebelde do que era, menos inquieta, mais serena, embora com alguma ponta de tristeza mal disfarçada no seu olhar limpo. Saímos juntos. Escolhi um bom e retirado restaurante na Praia Azul, bem perto da residência dela. Conversámos sobre o presente. Na próxima vez conversaremos sobre o passado. Fiquei comovido, o que não é costume em mim, o inefável indiferente…
DIÁRIO DE MARTA -24
Reencontrei o Carlos! Que homem bonito se fez! Contido nas palavras, mas nada pobre de inteligência. Transmitia tranquilidade. Igual a si próprio, sempre assim o conheci. Quando me separei dele há vinte anos reagiu exactamente desse modo. Recordo bem as últimas palavras dele: “Ok, fica bem, e fazes o favor de ser feliz!”. Nunca mais me procurou. Vinte anos. Uma vida. Que bom foi encontrá-lo, até que enfim!
EPÍLOGO OU PÓSFÁCIO
Tenho vinte anos, sou filho do Carlos e da Marta. Encontrei estes diários. A minha mãe autorizou a sua publicação, que achei oportuna. O professor Ramos já faleceu há muito tempo, pouco depois do reencontro dos meus pais. O meu pai morreu recentemente.
A anarquia transformou-se em revolução. Os costumes hoje são completamente diferentes, as tecnologias trouxeram-nos imensos benefícios, bem distribuídos por todos. Não existe mais, aqui, entre nós, miséria, pobreza, doenças que não são tratadas, ignorância endémica, desemprego. O bem-estar é geral e uniforme. Não garante a felicidade individual automaticamente, mas proporciona igualdade de condições e oportunidades.
A Ponte do meu pai ainda lá está, guardada e tratada com desvelo e carinho. A sua obra-prima, todavia, é o Centro de Cultura. Foi nele que aprendi as artes que cultivo. Nele revejo os sonhos de Carlos. Na ponte, revejo o amor entre os meus pais.
FIM
1 comentário:
Zé,
Este é um fim de certo modo inesperado, mas muito conseguido.
Será que vamos ter esta novela publicada muito em breve?
Assim espero.
Um abraço
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