Marxismo acadêmico e marxismo real
Por Alain Badiou, via Maquinacrisica.org, traduzido por Grupo de Estudos em Antropologia Crítica (GEAC)
Para começar, eu definiria grosso
modo o marxismo acadêmico como uma interpretação do marxismo, seja de
tipo epistemológico, seja de tipo ideológico ou filosófico. Em todos os
casos, consiste numa existência do marxismo que poderíamos separar da
ação política. Trata-se, por
conseguinte, de toda definição do marxismo e de toda prática do marxismo
que nos separa do militantismo comunista, seja por fazer do marxismo
uma ciência, seja por fazer dele uma representação geral; uma corrente
de pensamento entre outras. Mas, no que diz respeito a essas questões
difíceis, é necessário partir de mais longe. Eu começaria por uma
anedota. Durante uma conferência sobre o comunismo, realizada em Berlim,
o camarada Toni Negri enunciou que “certas pessoas tentavam ser
comunistas sem ser marxistas”. No momento destinado a minha fala, eu
respondi que essas “certas pessoas pensam que ser marxista sem ser
comunista é pior ainda”. Pois bem, independente desta polêmica, no final
das contas um pouco teatral, o ponto de indistinção está, de certa
forma, nestas duas noções. A meu ver, o núcleo do problema reside na
relação entre marxismo e comunismo.
Sem dúvidas, hoje em dia podemos falar
com facilidade, principalmente se conhecemos as universidades
estadunidenses, de um marxismo acadêmico que é claramente tratado como
uma mistura de sociologia e economia política. Há, também, e não podemos
esquecer-nos disso, um marxismo contestatário; um marxismo revoltado
que fala de luta, que fala de classe, mas que, no entanto, recusa, de
alguma forma, o marxismo como lugar das ideias e que pretende se furtar
da existência de organizações explicitamente comunistas. Pois bem, e
quais são os caminhos desse marxismo acadêmico contemporâneo? Podemos,
naturalmente, argumentar que o marxismo é uma ciência. Este foi um
aspecto do programa de Althusser, e também de outros tantos, antes e
depois dele. Penso que essa tentativa de posicionar o marxismo como uma
ciência remonta à social-democracia alemã do final do século XIX. É ali
que tal tentativa toma seu impulso. Neste caso, devemos perguntar
imediatamente de que trata essa ciência. Qual seria o objeto do marxismo
encarado como ciência? De um ponto de vista mais banal, pode-se dizer
que o marxismo é uma ciência revolucionária da economia, oposta ao
liberalismo clássico. Neste sentido, o núcleo do pensamento marxista
seria o edifício analítico – crítico e dialético ao mesmo tempo –
representado, especialmente, pela obra intitulada O Capital.
Estamos, ainda, num nível muito abstrato de discussão. De qualquer
forma, penso que essa tese banal, segundo a qual o marxismo é, antes de
qualquer coisa, e em primeiro lugar, uma teoria da economia
dialeticamente oposta à economia liberal, apresenta duas dificuldades.
Uma delas, bem conhecida, é que o subtítulo de O Capital é
“crítica da economia política”. Ele se apresenta, propriamente falando,
não como uma nova ciência da economia, mas sim como uma crítica
criadora, ainda que fortemente marcada de negatividade, do dispositivo
da economia política inglesa; do dispositivo de Smith, de Ricardo e de
alguns outros. Sendo assim, não me parece – e esta objeção é mais séria –
que o sistema geral das ideias verdadeiras, ou das ideias operatórias,
que constitui o marxismo possa ser deduzido da economia ou inclusive de
uma crítica da economia.
Um pequeno parêntese. Sobre este ponto,
me vem à lembrança uma meditação, contida num texto de Mao Tsé-Tung –
permitam-me citar esse nome próprio – intitulado “De onde vêm as ideias
justas”. Pergunta-se Mao: “As ideias justas procedem, em definitiva, da
economia considerada como ciência?”. Ele recorda, então, que as ideias
justas, inclusive as ideias justas em política, possuem na verdade três
fontes diferentes. Em primeiro lugar, a luta pela produção, situada numa
relação dialética entre o homem e a natureza, e organizada por uma
relação de produção. Em segundo lugar, a luta de classes, no campo da
contradição política gerada pela organização da produção. Em terceiro
lugar, aquilo que Mao denomina “experimentação científica”. Temos,
então, produção, luta de classes e experimentação. Esta terceira fonte
ocupa uma posição singular de descentramento em relação às outras. Isto
me lembra, diga-se de passagem, um texto realmente impressionante no
qual Lênin afirma que “em certo sentido, o progresso científico e
técnico está acima das classes”. A experimentação científica, nesse
ponto de vista, está numa independência relativa em relação ao sistema
de apropriação das relações sociais que a circunda, e a atividade
científica não é redutível nem ao resultado prático do que se joga nas
relações de produção, nem à luta de classes. De repente, vemos como o
marxismo pode ser reduzido a uma nova ciência da economia.
Outra hipótese em voga em todo o marxismo
acadêmico é que o marxismo proporia uma ciência da história. Mesmo se a
economia estiver em posição de infraestrutura, não há dúvida de que uma
ciência da história é um dado mais complexo, mais desenvolvido.
Falar-se-á então de “materialismo histórico”. Este é o nome canônico.
Estaremos tentados a dizer que o marxismo, pelo menos nos primeiros
tempos, é o materialismo histórico. De fato, essa é uma interpretação
dominante e aparece de forma corrente na opinião do mundo marxista.
Sinalizemos que esta não era, exatamente, a projeção de Althusser. Ele
dizia que o marxismo é uma ciência e uma filosofia. A ciência era o
materialismo histórico e a filosofia, como vocês sabem, era o
materialismo dialético. Esta divisão estava em perfeita conformidade
com aquela proposta por Stalin. Qual é, então, o enigma dessa definição
que estabelece a seguinte equivalência: marxismo = materialismo
histórico + materialismo dialético? Do meu ponto de vista, aqui o que
está ausente é a política. Isto não me parece compatível com os
propósitos de Marx ao longo de toda a sua vida: ele ajudou a criar uma
internacional e foi um animador da política comunista. Se nós
sustentamos que o marxismo é, essencialmente, uma ciência da história,
isso implica a determinação explícita da relação entre histórica e
política. Não vejo como seria possível falar de marxismo na ausência
total de qualquer referência à prática política revolucionária ou à
política comunista. Somos levados, então, à questão seguinte: qual é a
relação exata entre o materialismo histórico enquanto ciência da
história, isto é, ciência do passado, e o presente porvir, o presente
futuro no qual a ação política se engaja? O núcleo desta questão parece
ser o seguinte: como se situam os atores da prática política na grande
racionalidade histórica descrita pela ciência marxista? Em outras
palavras, existe no marxismo uma teoria do sujeito político. E, se o
núcleo duro do marxismo é o materialismo histórico, então sua teoria do
sujeito deve ser formulada no interior da ciência materialista da
história.
Poderemos sustentar que há um
materialismo histórico marxista porque o sujeito político é
historicizado em sua existência e em seu próprio desdobramento. Contudo,
como vocês sabem, essa não é a via escolhida por Althusser, posto que
ele colocava que a ciência da história é uma ciência da história sem
sujeito, o que vem a excluir a figura do sujeito político e, em
definitiva, a própria política em certo sentido. Evidentemente, a via
real sobre esta questão é, de certa maneira, sutil. Que lugar o
materialismo histórico oferece para a política como consciência de si
mesma? A via real considera que, no marxismo, os atores principais do
campo político são redutíveis às classes sociais e, portanto, aos atores
históricos e sociais. Eles não são necessariamente sujeitos. Isto
parece estar indicado, primordialmente, no início de um texto ao qual é
necessário voltar incessantemente: o Manifesto do Partido Comunista.
Ali lemos que “a história até nossos dias não foi outra coisa senão a
história da luta de classes”. Então, se existe sujeito, é lá que devemos
buscá-lo. Mas será que a história da luta de classes é redutível à
história das classes? Ou ainda: qual é a articulação entre classe e luta
de classes? Dado que o programa marxista consiste em criar uma política
– a política comunista – na qual se tornará consciente que a política é
a organização de uma luta de classes, podemos teorizar a subjetivação
de classe? É possível ir além da descrição histórico-objetiva das
classes? Não seria necessário supor que há uma interiorização política
dos dados objetivos do materialismo histórico e, finalmente, da própria
infraestrutura econômica? Não se fala, no marxismo, da passagem da
classe em si para a classe para si? Este é um problema que muitas vezes
agitou a história tormentosa dos diferentes marxismos.
Geralmente, estamos de acordo em que o
nome do ator principal de uma política marxista se chama “proletariado”.
Poderíamos dizer que o proletariado é um sujeito da história, ou um
sujeito de sua própria história? O que significa, exatamente, no caso de
uma resposta positiva, a passagem do ser objetivo da classe, tal e como
foi construído em pensamento pelo materialismo histórico, ao ser
subjetivo – e portanto político – da classe? Podemos pensar essa
passagem nos termos gerais do materialismo histórico? Neste ponto, eu
gostaria de fazer um novo parêntese, concernente a Mao Tsé-Tung. Será
meu último parêntese. Enquanto chefe de um processo político ao mesmo
tempo novo e complexo, Mao participava muito especialmente dessa
discussão teórica. E ele termina por endossar, de fato, a existência de
um sujeito da história. Mas ele o faz de três formas diferentes, de modo
que a questão se amplia. Talvez a unidade das três formas seja o
desafio de conjunto desta discussão. Há três sujeitos da história na
obra de Mao Tsé-Tung. O suposto sujeito aparece, primeiramente, em sua
figura mais clássica e sob seu nome usual: “proletariado”. Por exemplo:
“nós nos situamos na posição do proletariado”. Nós, o partido. Aqui,
“proletariado” é o nome da posição política e subjetiva marxista. É
subjetiva a ponto de Mao terminar dizendo que devemos entender por
“proletariado” o conjunto dos “amigos da revolução”. Parece haver um
círculo: uma definição objetiva, depois uma definição subjetiva, depois a
definição subjetiva substituindo a definição objetiva. Mas deixemos de
lado esse impasse. Mao emprega exatamente nesta mesma função a palavra
“povo”, que representa um complexo de classes, e não uma classe
identificável. Cito: “o povo, e só o povo, é a força motriz, o criador
da história universal”. Finalmente, e sempre na mesma posição subjetiva,
também encontramos o termo “massas”. Assim – cito – “as massas são os
verdadeiros heróis, enquanto nós somos muitas vezes de uma ingenuidade
ridícula”. Aqui, quem é designado por esse “nós” “de uma ingenuidade
ridícula”? Provavelmente seja o partido. É ele que, ao fim e ao cabo,
parece mal ajustado ao processo histórico e político e é ele que é de
uma ingenuidade ridícula em relação a esse ator essencial que são as
massas. Em suma – e isso é importante –, se “proletariado”, “amigos da
revolução” e “massas” podem ser equivalentes a “proletariado” em sua
função de sujeito político da história, a única coisa que parece não
participar dessa equivalência é o partido. De modo que esta hesitação
sobre o vocábulo destinado a identificar o sujeito da história demonstra
que a hipótese de que poderíamos reconduzir o marxismo, sob o nome de
materialismo histórico, ao lugar de uma ciência da história suscita
grande quantidade de debates e objeções.
Outra hipótese seria dizer que o marxismo
nomeia, na verdade, uma política. Uma política que, sem dúvida, pode
ser articulada a uma ciência e da qual poderemos falar como uma política
científica, ou algo assim, mas que continua sendo uma política. Se o
marxismo é uma política é necessário rever, desta vez – como fizemos
antes em relação às palavras economia e história –, a palavra
“política”. Neste ponto, eu gostaria de retornar sobre o próprio Marx e
perguntar o que ele entende por marxismo. E isso levando em conta que
Marx sempre afirmava que não era marxista. Estou pensando numa passagem
do manifesto que aborda o seguinte ponto: se existe alguma política
marxista, qual é, no próprio campo da ação política, o objetivo dessa
política? Que fim atribuímos a ela? Qual é a sua estratégia? A resposta
de Marx não é ambígua: se existe política marxista, seu propósito é o
fim da política em geral. O fim de toda a política. É uma política cujo
movimento imanente, à escala histórica, é o desaparecimento do Estado ao
mesmo tempo em que o desaparecimento da política. Trata-se de uma
política do fim da política, o que coloca uma complicação suplementar.
Retorno sobre as palavras de Marx: “uma vez desaparecidos os
antagonismos de classe no curso do desenvolvimento, estando a produção
concentrada nas mãos dos indivíduos associados, então o poder público
perde seu caráter político”. É uma frase muito intensa e muito especial:
“o poder público perde seu caráter político”. Propriamente falando, o
poder político é sempre o poder organizado de uma classe para a opressão
de outra. Se o proletariado, em sua luta contra a burguesia, constitui,
forçosamente, uma classe; se ele se erige, mediante revolução, em
classe dominante e, como classe dominante, destrói, através da
violência, o antigo regime de produção, ele destrói, ao mesmo tempo, as
condições do antagonismo de classe; ele destrói as classes em geral e,
por conseguinte, sua própria dominação como classe. Isto quer dizer,
expressamente, que o poder político do proletariado é o poder que
realiza a desaparição da política.
Então, se “marxismo” designa uma
política, esta consiste no processo de sua própria desaparição. A
política não é identificada como o núcleo do que o marxismo descreve
enquanto sua realização própria, posto que o que ele descreve é
exatamente o contrário, a saber: o fim da política, que é
consequentemente o fim do Estado e, portanto, a desaparição do conjunto
de categorias que constitui a política. Com efeito, neste texto a
política é identificada com o Estado. Podemos dizer que, em Marx, a
política é definida como a capacidade de uma classe de oprimir outra. É
precisamente isso que irá desaparecer com o advento do proletariado. A
desaparição da classe dos opressores e a desaparição da política são
identificadas com a desaparição do Estado. Como diz Marx, o poder
político do proletariado deixa de ser, na realidade, um poder de tipo
estatal. Posto que, em definitiva, o Estado é uma maquinaria que
representa ou concentra a opressão de classe. Deste ponto de vista,
poderíamos indagar se a palavra “marxismo” implica a redução da política
à existência ou ao exercício de um poder de Estado.
Política designa, em particular, algo que
constitui uma subjetividade prática que, no marxismo – enquanto teoria
da economia, das classes e da história –, está orientada à desaparição
do Estado e, de forma clássica, à desaparição da política. Em outras
palavras, a subjetividade prática esclarecida pelo marxismo não se
exerce como poder, mas sim como um processo que visa, constantemente, um
mais além da política. É nesse sentido que podemos falar de revolução,
de política revolucionária. Não é uma política entre outras; é uma
política que vai mais além de qualquer política e visa sua desaparição. A
consequência e o desdobramento do que se chama revolução deve trabalhar
imediatamente no sentido da liquidação da política, e também da
revolução, na medida em que ela é, em sua negatividade – a negatividade
da ditadura do proletariado –, uma figura estatal.
A dificuldade concernente à política
esclarecida pelo marxismo é, de fato, a questão fundamental da relação
entre marxismo e comunismo; relação que nos servirá de guia daqui para
frente. Se o marxismo pode ser descrito como uma política e se uma
política é, na realidade, por seu sujeito clássico – o proletariado –, a
conquista e o exercício ditatorial do poder com vistas à imposição do
fim buscado, então existe uma tensão contraditória entre marxismo e
comunismo. Isto porque o comunismo é, em essência, uma organização não
estatal da sociedade. Trata-se de um problema que coloca a questão de
sabermos o conteúdo de uma subjetividade política que não seja estatal.
Eis, aqui, o núcleo duro da questão. Trata-se de uma questão dramática
na história real, porque ela está sempre sobredeterminada pela urgência
do conflito entre a ambição comunista e a necessidade do Estado. Esta
tensão se realizou na história como a diferença entre socialismo e
comunismo. Na literatura clássica, os estados pós-revolucionários,
dirigidos pelos partidos comunistas, são normalmente denominados
“estados socialistas”. Sob toda a evidência, seria impossível
denominá-los “estados comunistas”. Estado comunista é uma expressão
contraditória. Foi proposta uma solução que consistia em dizer que o
Estado socialista era uma figura de transição destinada a consumar a
ruína dos estados e das classes, criando, assim, as condições do
comunismo, que põe fim ao estado. De tudo isso, eu concluiria que, no
estado atual da questão, com o balanço da história, poderíamos dizer que
a palavra “marxismo” não coincide exatamente com uma definição da
política. Ela constitui isso que eu chamo de um plano de fundo
analítico. Sua prerrogativa fundamental é pensar as determinações,
operar o conhecimento das situações concretas. Mas enquanto processo
prático e organizado, a política se define em outro plano. De fato, é
geralmente por isso que falamos não de política marxista, mas sim de
política revolucionária ou de política comunista. A respeito deste
ponto, poderíamos abrir um vasto debate que não vou iniciar aqui, mas
cujo cerne consistiria em retornar, uma vez mais, à lição retirada por
Marx da Comuna de Paris e à repercussão disso na meditação de Lênin
intitulada O Estado e a Revolução.
Bom, de tudo isso que venho dizendo
resulta que o marxismo não é identificável nem como uma ciência da
economia, nem como uma ciência da história, nem com a política
revolucionária. Ele não pode ser nem uma disciplina acadêmica, de tipo
científico ou ideológico, nem uma simples armadura ideológica situada no
segundo plano de uma revolta. A interpretação que o identifica com uma
ciência da economia e com uma ciência da história é, provavelmente, uma
interpretação direitista. Por outro lado, identificá-lo com uma armadura
ideológica no segundo plano das revoltas seria uma interpretação
esquerdista. E, como dizia Mao, nós devemos incessantemente procurar uma
interpretação de centro-esquerda. Resta então a hipótese de que o
marxismo seja, finalmente, uma filosofia. É a questão do materialismo
dialético. Retornamos, aqui, à fórmula completa de Althusser e de
Stalin. Na medida em que o marxismo seria constituído pelo par vivente e
concretamente aplicado do materialismo histórico e do marxismo
dialético, ele seria a adição dialética de uma ciência e de uma
filosofia. Eu já falei da ciência. Agora, falarei um pouco da ideia de
que o marxismo é uma filosofia.
No nível mais abstrato, o marxismo seria
uma metamorfose materialista do dispositivo filosófico de Hegel.
Haveria, então, uma substituição da dialética hegeliana através de
coordenadas materialistas. Estaríamos diante de uma desidealização dessa
dialética. Tal procedimento foi chamado pelo próprio Marx de uma
inversão da dialética hegeliana. Eu penso que a grande dificuldade
procede de que, a despeito da sedução metafórica, é a inversão que
conta. Marx se relaciona com a filosofia numa relação de
descontinuidade, que não é apenas uma simples relação de retorno ou de
inversão. Em certo sentido, Marx é um anti-filósofo. Eu recordo a
famosa tese sobre Feuerbach, onde lemos que “até aqui, os filósofos
interpretaram o mundo, agora se trata de transformá-lo”. A ideia de que a
filosofia é imediatamente o veículo de uma transformação do mundo supõe
uma inversão da definição da própria filosofia. Em outras palavras, se a
filosofia subsiste para Marx, ela deve estar engajada num protocolo
efetivo de transformação do mundo, devindo, portanto, uma dimensão
pensante da própria política revolucionária: uma dimensão imanente da
política revolucionária e não uma exterioridade ideológica ou abstrata. A
filosofia deve participar diretamente da transformação do mundo.
Segundo Marx, a filosofia não é nada se não se torna um componente
imanente e inseparável da prática política. Temos, então, a impressão de
que a verdade da filosofia marxista é novamente a política. Em
consequência, penso que a identificação do marxismo como a conjunção de
uma ciência da história e de uma filosofia torna-se extremamente
precária. Tão precária que não chegamos a definir o que quer dizer essa
imanência no tocante à prática política.
Até aqui, não encontrei um lugar para o
marxismo em minhas categorias – nem ciência, nem nova economia, nem
filosofia, nem uma teoria do sujeito político. Neste caso, eu deveria
dar razão a Toni Negri, isto é, tentar ser comunista sem ser marxista?
Provavelmente não.
Em primeiro lugar, quero tomar um ponto
de partida descentrado, novo. Vou partir de um texto famoso de Lênin que
fala da triplicidade. Um texto que leva por título As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo.
Este título anuncia que a gênese e a estrutura do marxismo serão
esclarecidas. Já desde o início nós encontramos uma dificuldade: para
Lênin, o marxismo é filosofia + ciência + política. Estas são as três
partes constitutivas, sintetizadas no movimento comunista. Por sua vez,
as três fontes são, filosoficamente, o idealismo dialético alemão
(Hegel), cientificamente, a economia política inglesa (Ricardo) e
politicamente, o socialismo inerente ao movimento operário francês. É
uma grande aliança: praticamente o contorno da Europa atual. A aliança
do elemento francês, do elemento inglês (sem Brexit) e do elemento
alemão. Revisto por Lênin, o pensamento marxista organiza a
triplicidade, ela própria dialética, do idealismo hegeliano, da economia
política inglesa e do socialismo primitivo inerente ao movimento
operário francês. Há três termos, e não dois. Este é o principal
deslocamento que Lênin introduz nessa abordagem da definição do
marxismo.
Essas três fontes devem ser criticadas de
forma radical e nunca operadas tal e como elas são. A dialética
idealista alemã precisa ser transformada em materialismo, o que implica
uma operação muito violenta. No que concerne à economia política
inglesa, todo O Capital demonstra que Ricardo e os ingleses não
viram o ponto central, a saber: que os termos fundamentais do
capitalismo não estão constituídos pela relação entre coisas, mas sim
por relações sociais, o que é uma transformação absolutamente radical.
Já o socialismo inerente ao movimento operário francês vai ser
completamente desmantelado a partir da oposição entre comunismo
científico e comunismo utópico. Será demonstrado que o socialismo
francês é essencialmente um tema pequeno-burguês inofensivo, de acordo
com a forma em que Marx criticava Fourier e Proudhon. Ao fim e ao cabo,
as famosas fontes do marxismo não são tais, salvo na medida em que
mudemos completamente a água que nelas flui. Este é o primeiro grande
problema.
O segundo problema versa sobre a questão
da unidade dessas três fontes. Se o marxismo tem três partes
constitutivas – economia, política, filosofia –, então qual é o tipo de
unidade dessas três fontes? Minha hipótese, que já está presente na
filigrana em Marx e em Lênin, é que o vínculo fundamental entre as três
partes constitutivas é o conceito de classe. Estou tentado a dizer que,
em definitiva, o marxismo designa a potência da categoria de classe como
categoria ao mesmo tempo transversal – esclarecendo a filosofia como
materialista, a ciência como dialética da economia e a política como
comunista – e central, constituindo a unidade dos três termos. Atenção:
se a categoria de classe for central no marxismo, não podemos
inscrevê-la em alguma das três partes constitutivas. A categoria central
atravessa as três fontes. Em particular – e este é um erro
frequentemente cometido – o conceito de classe não deve ser considerado
como um conceito inerente à ciência da história, ou materialismo
histórico, enquanto definidor da contribuição criadora do marxismo. Marx
disse expressamente o contrário e é sempre necessário lembrar-se disso.
Para Marx, os historiadores reacionários franceses inventaram o
conceito de classe e viram perfeitamente que o motor da história era a
luta de classes. Este ponto, segundo Marx, não é invenção sua. Em
consequência, a contribuição do marxismo para o pensamento
revolucionário moderno não pode ser a natureza de classe dos diferentes
níveis da ação humana, mas sim a forma em que essa natureza de classe
transforma os próprios níveis da ação humana. A questão é, então,
colocada em três níveis.
Pois bem, e o que o marxismo transforma
da dialética alemã, da economia política inglesa e do movimento operário
francês, de modo a unificá-los? Em primeiro lugar, pode-se dizer que há
uma definição filosófica do proletariado como classe universal. Em
suma, a classe está presente não no exterior, mas no interior da
determinação filosófica da inversão do idealismo em materialismo. O
proletariado é concebido sob o modelo da negatividade hegeliana; ele
substitui a negatividade hegeliana, mas de forma afirmativa. O
proletariado não é apenas o termo de uma contradição social. Trata-se da
classe portadora do porvir, precisamente na medida em que não tem nada a
perder. A classe proletária é menos uma identidade social plena que o
elemento considerado como absolutamente nulo, vazio, da sociedade
burguesa. Nesta sociedade, o proletariado é o ponto de negatividade
radical, apenas capaz de trabalhar do interior dessa totalidade para
desfazê-la. Em outros termos, trata-se da única classe cujos interesses
podem ser considerados como os interesses da humanidade inteira. É o que
diz o hino do proletariado: “se nada somos em tal mundo, sejamos tudo”.
Eis, aqui, um enunciado filosófico e não apenas uma pretensão gloriosa.
A possibilidade de articular o nada do presente e o sentido total do
porvir é, de qualquer maneira, a definição filosófica do proletariado
tal e como o concebe o marxismo de Marx. Isto está perfeitamente claro
no famoso manuscrito de 1844. Mas Marx nunca abandonou esse ponto de
vista. Ora, o que esta definição revela é o sentido contraditório da
política, posto que a política consiste em fazer advir a negatividade
enquanto afirmação. O proletariado é o vazio da sociedade existente e é
nessa condição que ele vai realizar a possibilidade de uma superação
universal que acarreta a abolição da própria política. Esta é a função
do conceito de classe na filosofia. Agora, passemos a abordar esse
conceito no concernente à economia política inglesa.
A crítica marxiana constrói uma teoria do
capitalismo de tal forma que podemos ali situar, decisivamente, o
conceito de luta de classes e de classe. Este é o verdadeiro alvo de O Capital. Às vezes tal aspecto se torna fugidio porque O Capital está inacabado. O Capital devia
findar numa consideração exaustiva sobre o que é uma classe social e,
finalmente, o proletariado. Não se resumia, portanto, a uma teoria geral
das estruturas da organização capitalista. O Capital foi
interrompido no nível do Livro II pela morte de Marx. Em seguida, mesmo
quando passamos para o Livro III, organizado por Engels, constatamos que
não foram ainda tratados de forma decisiva os conceitos de classe, de
luta de classes e de proletariado, ainda quando Marx almejasse fazê-lo.
No fundo, a inversão da economia política de Ricardo foi a colocação em
perspectiva científica do conceito de classe, de luta de classes e de
proletariado.
Finalmente, qual é a função da classe na
política? A política será definida como uma política de classe; ela vai
se apresentar a si mesma, pensar-se a si mesma como uma política de
classe revolucionária, proletária ou comunista. É certo, então, que o
conceito de classe atravessa as três fontes e as três partes
constitutivas do marxismo. É, sobretudo, a partir dele que o pensamento
marxista se organiza na totalidade das suas dimensões. Podemos dizer que
o conceito que cria a unidade potencial do marxismo é o conceito de
classe. Trata-se, naturalmente, do conceito em sua nova significação,
estabelecida por Marx. Tal conceito está disposto de modo a funcionar
como uma espécie de nó dialético do conjunto de três partes
constitutivas daquilo que chamamos de marxismo. Se isso for verdade, o
centro gravitacional do marxismo devém a relação entre classe e
política.
De fato, a definição especulativa da
classe e a inscrição do seu conceito na análise das relações sociais de
produção devem ser injetadas na discussão e na orientação política,
tendo em vista o objetivo e a necessidade de transformar o mundo – e não
de interpretá-lo. Esta é a fórmula que resume a oposição entre
marxismo real e marxismo acadêmico. O marxismo acadêmico é aquele que se
serve do marxismo para interpretar o mundo. O marxismo real é aquele
que se serve do marxismo para transformá-lo. Voltamos, assim, ao ponto
de partida. Agora, é a relação entre classe e política que se torna
determinante.
Há um texto de Lênin, ainda nas Três fontes…,
que aborda esse ponto de maneira forte e pertinente. Cito: “Os homens
sempre foram em política vítimas ingênuas do engano dos outros e do
próprio e continuarão a sê-lo enquanto não aprendem a descobrir por trás
de todas as frases, declarações e promessas morais, religiosas,
políticas e sociais, os interesses de uma ou de outra classe. Os
partidários de reformas e melhoramentos ver-se-ão sempre enganados pelos
defensores do velho, enquanto não compreenderem que toda a instituição
velha, por mais bárbara e apodrecida que pareça, se mantém pela força de
umas ou de outras classes dominantes. E para vencer a resistência
dessas classes só há um meio: encontrar na própria sociedade que nos
rodeia, educar e organizar para a luta, os elementos que possam — e,
pela sua situação social, devam — formar a força capaz de varrer o velho
e criar o novo”. O que podemos retirar deste texto tendo em vista a
questão que nos ocupa? Lênin mostra muito bem que a questão difícil e,
portanto, a tarefa política da função crítica é discernir os interesses
subjacentes ao que se apresenta na sucessão das situações. Se não
discernirmos os interesses que estão em jogo na sucessão das situações,
seremos a vítima ingênua do velho mundo. Vemos perfilar-se o fato de
que, na verdade, a unidade da política, da análise econômica e da
filosofia se cristalizará nessa capacidade de perceber o outro lado do
cenário: o sistema de interesses que realmente move as aparências. Ali
se realiza o sentido fundamental do marxismo. Os atores históricos –
isto é, os militantes políticos – devem esforçar-se por discernir, na
própria situação, e com ajuda da ciência, o jogo conflitivo dos
interesses. Finalmente, eu penso que a política é definida, no marxismo,
pela passagem da analítica à ação através de algo que se denomina
educação ou organização.
O conteúdo da educação e da organização é
o aprendizado ativo e prático do discernimento dos interesses
subjacentes ao cenário social. O que é central na política e, portanto,
no marxismo, é essa transição entre o discernimento e as consequências
ativas e revolucionárias do discernimento. E é tal passagem que demanda
organização. A organização é a unidade efetiva dos recursos do
discernimento dos interesses e das consequências ativas desse
discernimento, uma vez que seus efeitos foram difundidos. Então,
finalmente, poderíamos definir no coração do marxismo a categoria de
organização como conceito chave da política. Seria necessário retornar a
essa boa e velha ideia. A organização é algo diferente da reunião de
forças, onde se estabelece um pouco de ordem, onde se cria alguma
disciplina. A organização é o que organiza a passagem ativa do
discernimento do que é real sob a ficção e a aparência do véu social
rumo às consequências ativas e práticas desse mesmo discernimento.
Portanto, poderíamos dizer que a organização é idealmente o ponto
verdadeiro onde os diferentes aspectos, as diferentes considerações
relativas à essência do marxismo encontram-se articuladas.
Dizer que o sentido da política marxista –
isto é, da política comunista – é a organização coloca, evidentemente, a
questão da forma da organização. Talvez o critério da forma de
organização é que ela seja capaz de assumir, na situação real – e essas
situações reais mudaram –, ao mesmo tempo a função educativa do
discernimento e a função ativa das consequências extraídas desse
discernimento. Como vocês sabem, Lênin irá propor uma forma-partido para
resolver esse problema. O partido de Lênin estava fortemente marcado
pela ideia de se diferenciar da forma alemã do partido social-democrata.
Ele considerava que a forma alemã era débil em termos de discernimento.
A consequência disso foi seu acomodamento às situações transitórias de
poder e ao jogo parlamentar. A forma partido proposta por Lênin esteve
marcada, é necessário dizer, por uma disciplina quase militar. Acredito
que a razão fundamental dessa disciplina estava orientada à ideia de
que, por fim, fosse realizada, no mundo real, uma insurreição vitoriosa.
Esse era o objetivo real extraído do balanço do século XIX. Através do
balanço do século XIX, Lênin viu que a insurreição operária, sejam quais
fossem suas formas e lugares, sempre havia sido esmagada. Esse é seu
balanço maior de junho de 1848 e da Comuna de Paris, indissociável da
ideia de que as coisas não poderiam continuar desse jeito. Não era
possível que as consequências do discernimento real, cujos meios são
oferecidos pelo marxismo, redundassem na repetição inelutável de
fracassos sangrentos e devastadores. Neste caso, o ponto fundamental
para Lênin era concentrar o marxismo na historicidade concreta de uma
insurreição vitoriosa. O partido hierárquico e disciplinado estava
orientado para essa tarefa.
Podemos dizer que o sentido da política é a organização na acepção muito precisa de organização do discernimento,
cuja necessidade é, ao mesmo tempo, crítica e prática. Na medida em que
o discernimento pode aparecer de modo espontâneo, trata-se, no que diz
respeito à organização, de tanger suas formas, de completá-lo, de
articulá-lo e de transformá-lo numa palavra de ordem política. Isto
significa a possibilidade concreta de transformar o discernimento em
consequências ativas, que irão varrer o que é velho e criar o novo, como
dizia Lênin. (Entre parênteses, podemos confirmar que o propósito de
Lênin era esse porque, logo depois da vitória da Revolução de Outubro,
ele disse que “a partir de agora começa a época das revoluções
vitoriosas”. É a noção de “vitória” que está no coração da organização
do pensamento leninista, algo que tem consequências tanto negativas como
positivas. A continuação disso que teve lugar depois da vitória impõe
problemas de organização diferentes daqueles colocados pela própria
vitória. Mas essas são outras questões).
A meu ver, levando em conta o argumento
anterior, é correto sublinhar o seguinte: depois de todas essas
sequências – leninistas, stalinistas, etc. – é a questão da organização
que está em jogo. Precisamos pensar a organização não como um meio a ser
defendido, cuja necessidade se fixa de fora para dentro, mas sim como a
constituição do próprio fim. Recapitulo. Para mim, a dimensão
filosófica do marxismo é a ideia de que um pensamento político só pode
existir na forma prática de sua organização. O marxismo designaria esse
ponto, forjado sobre o caráter transversal da noção de classe. Isto
exige um pensamento dialético, posto que se trata de um pensamento da
transformação do discernimento em ação e da ação numa subversão radical
do mundo dado. Assim, a filosofia estaria estabilizada, no marxismo, em
torno do conceito de organização. O mesmo ocorre em relação à ciência,
posto que, evidentemente, ela está orientada ao discernimento. É
condição maior do discernimento: teoria geral do capital, análise
concreta de situações concretas, como colocava Lênin. A ação
revolucionária da ciência – podemos chamá-la de materialismo histórico,
se vocês quiserem – consiste em fazer que qualquer um se torne capaz de
discernir os interesses por trás do que se diz. Essa pedagogia será o
mais ampla possível. Por exemplo, o que há por detrás da exaltação dos
valores democráticos da França atual? Ou ainda, o que há por trás da
necessidade de reformas importantes da lei trabalhista? O que se
apresenta, realmente, por trás do direito de ingerência por razões
humanitárias, quando nos damos conta que tal ingerência ocorre onde há
petróleo e minério? Não podemos organizar uma ideia geral a priori,
porque fazê-lo exige a proliferação de escolas de pensamento, exige que
reunamos as pessoas, que procuremos tanger sua intelectualidade e seu
deciframento do mundo. Trata-se de que cada um venha a discernir os
interesses em jogo e de que se torne possível tratar coletivamente as
consequências desse discernimento, em vez de se deixar paralisar por um
reconhecimento simplesmente científico ou crítico que seria vão, dado
seu caráter não organizado. No fundo, a ciência vai intervir para
auxiliar o caráter organizado do discernimento. Eu definiria assim seu
papel. No que diz respeito à política, ela vem a ser o próprio processo
através do qual o discernimento partilhado e organizado no campo da ação
coletiva – vitoriosa, de preferência – é dirigido segundo uma palavra
de ordem afirmativa, construída em situação. O que eu reconheço no
marxismo é a política concebida enquanto figura da construção ou da
reconstrução de uma organização que é capaz de fazer passar setores
inteiros da sociedade do estado do discernimento ao estado da ação
coletiva efetiva. Mesmo que numa outra linguagem, parece-me que tudo
isso está absolutamente presente, desde o início, naquela passagem do Manifesto onde
Marx se pergunta “o que é um comunista?”. Ali, Marx começa dizendo que
“os comunistas não se diferenciam do movimento operário em geral”. É uma
fórmula complicada que quer dizer que os comunistas não se definem a priori,
como se eles existissem em exterioridade ao movimento geral da classe.
Eu já disse antes, a propósito de Mao: o comunista se situa, ou procura
se situar na posição do proletariado. Nesse sentido, ele compartilha com
o movimento operário em geral aquilo que eu denominaria um lugar comum,
uma topologia comum. No entanto, em relação à massa situada nesse lugar
comum, o comunista – nos diz Marx – possui duas características ou, se
formos especificar um pouco mais, três características.
Primeira característica: os comunistas,
ou seja, os militantes marxistas no sentido de Marx, são capazes de
antecipar a etapa seguinte. Esta é sua relação com o tempo. Num estado
dado do movimento geral, ele é capaz de representar, via discernimento,
uma figura de orientação desse estado geral em direção a uma etapa
ulterior. No vocabulário que eu introduzi, o comunista é capaz de fazer
passar do discernimento atual da situação às consequências porvindouras,
as quais serão necessárias se quisermos que tudo isso represente,
efetivamente, o movimento de uma política comunista. Além do mais –
segunda característica –, os comunistas fazem o global prevalecer sobre o
local. Na prática, isso quer dizer que eles são, de forma principal e
interna a todo o movimento, internacionalistas. Mesmo na condição
particular de uma transição organizada, o comunista não esquecerá nunca
que os interesses do conjunto devem prevalecer sobre os interesses
locais ou exageradamente singulares. Enfim, a terceira coisa que
caracteriza os comunistas é sua obstinação. Isso significa que eles não
confundem os interesses gerais do movimento com esta ou aquela
peripécia. Aqui, eu não posso evitar a referência a Mao… Numa passagem
muito conhecida ele diz o seguinte: “eis o ritmo: fracasso, sucesso,
fracasso, sucesso até…”– e aqui todos pensam que vamos dizer “até o
fracasso final”, mas para Mao é até o sucesso. Contudo, “sucesso final”
não quer dizer muita coisa.
O que é o sucesso final em política? Para
mim, “sucesso final” quer dizer apenas criação, em algum lugar, de algo
irreversível. É isso que eu chamo de vitória: criação, em algum lugar,
de algo irreversível, mesmo que local. Eu diria o mesmo a respeito da
organização. A organização é o que orienta a situação popular, a
situação de revolta, de levantamento – o que Marx chama de movimento
operário geral – rumo a um ponto irreversível; um ponto que será ganho
efetivamente; um ponto que a conjuntura geral impede que nós alcancemos.
A organização age de modo a operar uma direção rumo à gestão das
consequências a partir do discernimento, mas não apenas isso. Sua função
mais importante é orientar as consequências para que se constitua, na
situação, algo irreversível; a impossibilidade de voltar atrás. O
sentido da política e, portanto, o sentido o marxismo, não é tanto a
vitória antagônica, que é um objetivo estratégico (vencer o inimigo,
dispersá-lo); o que conta, a meu ver, é que Marx detalhou, em sua
gigantesca obra, que é necessário organizar a passagem do discernimento à
ação coletiva. Seria necessário, então, resolver as contradições já no
nível do discernimento; isto é, no nível disso que queremos organizar.
Em outros termos, o sentido da política é a resolução das contradições
no seio de nosso próprio campo; no seio da comunidade que deve ser
coletivamente representada ou animada e que será o agente de uma
modificação irreversível.
Creio que podemos denominar “marxismo” um
pensamento que situa de forma complexa, englobando todos os níveis de
análise e compreensão, a possibilidade de uma prática política ajustada à
categoria de classe, animadora do conjunto do dispositivo. Mas
fundamentalmente, o propósito do marxismo é inventar uma nova prática.
Prática cujo núcleo consiste em superar as divisões que aparecem sempre
no discernimento dos componentes da situação e, a partir daí, buscar as
consequências unificadas desse discernimento em direção a algo
irreversível. É nesse sentido que o marxismo não pode ser encarado
simplesmente como uma doutrina acadêmica, como uma economia ou mesmo
como uma filosofia. Dito isso, e já que estamos falando de
discernimento, é licito afirmar que a alma do marxismo é a reunião: ali
se resolvem as contradições entre as pessoas, por meio da discussão; é
ali que a análise da situação avança; é ali que a palavra de ordem é
afiançada, ao cabo de discussões que habilitam a promessa do
irreversível.
O que é uma reunião? Uma reunião é,
sempre, a cura de uma divisão; da divisão a respeito do discernimento.
Uma reunião implica construir uma unidade que não existe. Não consiste
em assegurar a anuência das pessoas, independentemente de qualquer
discussão. Não faz nenhum sentido se reunir, se todo mundo já está de
acordo. Neste caso, o Secretariado Geral é suficiente. A reunião é a
alma da política organizada e é o lugar concreto de existência do
marxismo. É do sentido da classe, tratado em diferentes níveis –
filosofia, ciência, economia, política – que vamos tentar estabelecer um
princípio comum, superando, assim, a divisão empírica do discernimento e
alcançando proposições precisas, concernentes à ação imediata. O lugar
onde tudo isso deve ocorrer é sempre numa reunião. Qualquer reunião é,
então, a prova de uma figura de aliança entre subjetividades dissímiles,
dado que consiste, precisamente, na orientação compartilhada entre
essas subjetividades; orientação esta que irá constituir uma nova força
política na situação. A reunião é, portanto, o sentido vivo do próprio
marxismo: ele existe ali. Não existe no que está escrito, nos livros, no
passado histórico. O marxismo existe, verdadeiramente, no processo de
uma reunião que pode ser pequena ou gigantesca, isso depende das
circunstâncias.
Tendo em vista tudo o que foi dito,
poderíamos descrever a história do passado de forma diferente daquela
que nos é proposta – totalitarismo bárbaro, etc., etc. Penso que a
história do passado foi aquela de uma falta de reunião. Não se tratou do
fracasso de uma super-organização (o partido totalitário), mas sim do
fracasso de uma insuficiência de organização; do conteúdo da
organização, tendo vista o que o marxismo demandava. Os partidos
comunistas, estejam eles no poder ou não, se engessaram, se
institucionalizaram, não tiveram a abertura necessária à figura vivaz da
reunião criadora. Lênin mesurou a amplitude desse desastre desde os
anos 1920. Ele viu que, em seu próprio país, muitos militantes e quadros
se tornaram funcionários administrativos servis. Ele diagnosticou essa
esclerose institucional, que permitia a comparação do Estado bolchevique
com o próprio Estado czarista. Lênin percebeu que a reunião já não
estava no coração das coisas; que tudo havia reincidido no espaço do
poder e do Estado. Hoje em dia, o marxismo é, também, tendo em mente o
balanço de tudo isso, o nome de um fracasso. A modernidade democrática
do capital se empenhou em fixar esse fracasso e em torná-lo irreversível
na opinião pública. Declara-se que o marxismo não só é um erro
grosseiro, mas também uma utopia criminosa. Esse esforço destrutivo
conheceu certo sucesso, porque a palavra comunismo já não pode ser
pronunciada, nem justificada, nem praticada. Isso confirma que a
ascensão do marxismo, a abertura de sua nova potência – para mim,
inevitável – exige começar pela recuperação da palavra comunismo, pelo
seu resgate do abandono. Mais além de uma crítica inovadora, nós
precisamos restabelecer a necessidade e a glória dessa palavra. Sem o
comunismo e sua reabilitação, o marxismo não será muito mais do que uma
doutrina acadêmica de elegância variável. Esse fracasso do marxismo, sua
relegação acadêmica longe do real político, é o fracasso de sua
inspiração maior; aquela inspiração cujo núcleo é a política comunista
no sentido que eu venho propondo. Não se trata de um poder de Estado
vitorioso, mas de uma operação contínua da mediação entre discernimento
popular e ação, numa rede densa e constantemente ativa de reuniões
criadoras. Nossa tarefa atual tem a ver com a necessidade de ressuscitar
o marxismo, na medida em que sua disposição fundamental continua sendo,
apesar de tudo, uma promessa intacta. O marxismo, que é a intelecção da
política comunista e a vivacidade do discernimento na reunião, continua
propondo, ao fim e ao cabo, a única modernidade concorrente em relação
ao capitalismo mundializado. A única, em sentido estrito, pois não há
nela, rigorosamente, nenhum tipo de retorno à modernidade anterior.
* Conferência pronunciada por Alain
Badiou no dia 15 de maio de 2019, durante o seminário “Marx no século
XXI”, organizado pela Equipe de pesquisa PHARE (Universidade Paris 1
Panthéon-Sorbonne) com apoio da CERPHI (École normale supérieure de
Lyon) e do Círculo Universitário de Estudos Marxistas.
** O Grupo de Estudos em Antropologia Crítica é um coletivo independente que atua na criação de espaços de auto-formação e invenção teórico-metodológica. Constituído em 2011, o GEAC se propõe, basicamente, a praticar “marxismos com antropologias”. Isto significa desenvolver meios para refletir, de maneira situada, sobre os devires radicais da conflitividade social contemporânea. Delirada pelo marxismo, a antropologia se transforma, para o GEAC, numa prática de pesquisa e acompanhamento político das alteridades rebeldes que transbordam e transgridem a pretensão totalitária do modo de produção vigente e da sua parafernália institucional.