Em
todos os Orçamentos do Estado há um qualquer “irritante” à esquerda.
Raramente é uma questão meramente simbólica – afeta o bolso das pessoas
–, raramente é questão estrutural, das que definem a natureza do
Orçamento, das políticas públicas e das grandes escolhas para o país.
Critico o PS por não se propor fazer mais do que gerir o que existe. Não
chega para quem queira salvar a democracia, a sustentabilidade do
planeta, o Estado Social ou só um capitalismo minimamente regulado. A
crítica é extensível ao Bloco e ao PCP. Para eles, a política passou a
ser pouco mais do que uma lista de mercearia. Apesar de a vida das
pessoas não permitir que se desprezem pequenas conquistas, que contam na
sua carteira, é curto.
Desta
vez, o debate foi em torno do IVA da eletricidade. Como no caso dos
professores, o PSD ameaçou com uma “coligação negativa” (das expressões
mais estúpidas e antiparlamentares que a política inventou). Perante a
aparente impossibilidade de ter uma taxa variável conforme o consumo, a
proposta de descer o IVA da eletricidade para a taxa intermédia
parecia-me justa. Até por ser um imposto indireto e cego. Mas tenho
dificuldades em perceber que a principal bandeira dos partidos à
esquerda do PS seja fiscal. Sobretudo quando conseguiram tão pouco no
financiamento do Estado Social. Apesar do aumento do orçamento para o
SNS ser fundamental para o seu funcionamento, sabemos que não foi mais
do que o fim da suborçamentação, para impedir endividamento. Foi um
adiantamento. Uma medida de gestão importante, nenhuma escolha de fundo.
Quando nos encaminhamos para a votação final
global, fica evidente que todos os intervenientes sabiam como ia acabar
esta rábula. Para compensar as perdas orçamentais no IVA, o PSD
apresentou uma proposta demagógica sobre os gastos dos gabinetes
ministeriais, feita em cima do joelho e a olhómetro, como é costume
nestes casos. Sabia ser popular e ter chumbo certo. E que lhes daria o
argumento para não votar a descida do IVA da eletricidade. BE e PCP
conseguiram, em troca do previsível revés, um aumento extra de 10 euros
para as pensões mais baixas. E conseguiram um reforço de 20 a 25 milhões
de euros para baixar a tarifa dos passes em diferentes regiões. Tudo
muito importante, tudo uma mera continuação da lógica que presidiu à
legislatura anterior.
Quando o PS optar por uma
proposta realmente distintiva, capaz de oferecer às pessoas um módico
de esperança que as mobilize para a democracia, e quando BE e PCP
quiserem ir mais longe do que o espaço que já conquistaram, o precedente
que permite alianças foi criado
Muitos amigos
perguntam-me porque andei anos a bater-me para que a esquerda se
entendesse e agora a pico para que seja mais exigente. Compreendo a
dúvida, mas ela resulta de um equívoco: o de que os entendimentos à
esquerda são um fim em si mesmo. Não são. São um meio prático para
melhorar a vida das pessoas e foram um meio político para desbloquear o
beco sem saída. Os entendimentos à esquerda serviram para fazer reverter
as medidas da troika e conseguir algumas conquistas sociais. Serviram
para quebrar um tabu, abrindo a possibilidade de a esquerda negociar
orçamentos ou soluções de governo. E cumpriram estes objetivos. Grande
parte das medidas foram revertidas, houve conquistas (como a redução dos
preços dos passes sociais e das propinas) e o diálogo deixou de ser
impossível. Mas os entendimentos à esquerda não podem servir para
alimentar um pântano que entregará o descontentamento a forças
sinistras.
A minha luta pelo
fim do sectarismo à esquerda, que se mantém, não foi uma luta pela
indiferenciação política ou pela neutralização dos partidos à esquerda
do PS. Isso seria trágico para todos. Foi uma luta pela capacidade de se
fazerem alianças sempre que elas sejam úteis e possíveis. Depois da
“geringonça”, depois de se ter quebrado um tabu, elas passaram a ser
possíveis sempre que haja mínimos de convergência. Quando o PS optar por
uma proposta social-democrata realmente distintiva, capaz de oferecer
às pessoas um módico de esperança que as mobilize para a democracia, e
quando BE e PCP quiserem ir para lá do espaço que já conquistaram, o
precedente que permite alianças já foi criado. E isso era o mais
difícil.
Até lá, o PS
escolheu mesmo governar sozinho. Se quer governar com os critérios do
centrão terá de arranjar maneira de se entender com Rui Rio. Se,
ultrapassada a fase das reversões de medidas, quiser construir um
programa ambicioso à esquerda, BE e PCP têm o dever de se encontrar com
ele a um meio caminho, cedendo em parte dos seus programas. Se o PS
quiser, como parece ser o caso, manter-se em espargata, deve lidar com o
facto de dirigir um governo minoritário e assumir as consequências de
ter feito essa escolha. O que não terá qualquer utilidade para o país,
porque promove uma governação incoerente, e para a esquerda, porque
neutraliza uma oposição transformadora em troca de muito pouco, é um
leilão anual para que cada um salve a face. Ainda mais quando esse
leilão já segue uma coreografia previsível de desentendimentos
inconsequentes. O ciclo político mudou. Lidem com isso.
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