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domingo, 23 de fevereiro de 2020

Por uma nova síntese à esquerda

Nancy Fraser e Rahel Jaeggi fornecem um poderoso mapa para a reconstrução do socialismo democrático no século XXI.


Por Pedro Paulo Zahluth Bastos.

A totalidade é uma categoria cara a hegelianos e marxistas: o todo de um sistema está também nas partes. Um objeto não deve ser entendido em isolamento, e sim em suas relações com outras partes e em sua posição no sistema. O todo, por sua vez, não é totalidade abstrata, e sim nexo das relações entre as partes ou, na célebre formulação de Marx, síntese de múltiplas determinações.

Os riscos que muitos marxistas não evitaram são, primeiro, a banalidade, quando a análise rigorosa da parte é substituída pelo argumento de que “isto nada mais é” do que expressão de um problema mais geral. Segundo, o economicismo: tomar cada objeto como reflexo direto de alguma determinação econômica oculta.

Nancy Fraser e Rahel Jaeggi escreveram este brilhante Capitalismo em debate, livro que rejeita a banalidade e o economicismo sem abandonar o marxismo e sua pretensão totalizante. Não propõem que entendamos tudo de um modo novo, mas pelo menos que entendamos o capitalismo com uma riqueza de relações que surpreenderia quiçá o próprio Marx.

O capitalismo não é tomado apenas como modo de produção, mas como ordem social institucionalizada que compartimenta e hierarquiza esferas da vida: a economia regida pela finalidade da acumulação de capital; a reprodução social, na qual os humanos são criados, têm afetos e se aculturam; a natureza; o Estado.

A história do capitalismo é entendida como o vetor de um jogo de forças em que a organização institucional da ordem social se estabiliza por décadas, apenas para ser tensionada pelas contradições do sistema. Dois Karls (Marx e Polanyi) são mobilizados para que, superando os pontos cegos de cada um, as autoras teçam com elegância uma nova visão do capitalismo no longo prazo.

Separada institucionalmente, a “economia” do capitalismo parece não se integrar às demais esferas, embora não se reproduza sem aquilo que busca subordinar: humanos, natureza e Estado. Induzida pela concorrência na busca por enriquecimento, a acumulação de capital tende a rejeitar os custos e as normas da reprodução social, da ecologia e da democracia.

O cenário para a crise está armado. Não apenas a crise econômica que o sistema impõe a si mesmo ao concentrar renda/riqueza e superproduzir bens e serviços, ativos e passivos financeiros. Também a crise da reprodução social, à medida que família, escola, saúde e aposentadoria sofrem pressões crônicas de financiamento e são tensionadas pelas lógicas da competição, da desigualdade, do patriarcado e do racismo.

Crise da natureza, subordinada pelo capitalismo como fonte inesgotável de insumos e destino infinito de rejeitos poluentes. Do Estado, capturado por interesses privados e premido pela pressão capitalista para rebaixamento de custos tributários, trabalhistas e regulatórios, para redução da “carga” dos direitos democráticos, sociais e ambientais em nome do Estado-competição.

Para enfrentar a complexidade da crise, não basta lutar pelo reconhecimento de identidades culturais. A afirmação tolerante da diversidade é imprescindível, mas uma nova síntese à esquerda precisa superar o neoliberalismo progressista e, cada vez mais, o regressivo e autoritário. Nesse sentido, Fraser e Jaeggi fornecem um poderoso mapa para a reconstrução do socialismo democrático no século XXI.

***

Capitalismo em debate: um diálogo na teoria crítica, de Nancy Fraser e Rahel Jaeggi

Tradução: Nathalie Bressiani
Neste texto dialógico, Nancy Fraser e Rahel Jaeggi lançam um novo olhar sobre as grandes questões que envolvem o “capitalismo”, desfazendo muitas de nossas prenoções sobre o que ele é e como submetê-lo à crítica. Elas mostram como, ao longo da história, vários regimes do capitalismo se basearam em uma série de separações institucionais entre economia e política, produção e reprodução social, natureza humana e não humana, reajustando periodicamente as fronteiras entre esses domínios em resposta a crises e revoltas sociais. As autoras refletem sobre como essas “lutas de fronteira” oferecem uma chave para entender as contradições do capitalismo e as múltiplas formas de conflito que ele gera. O que surge é uma renovada crítica da crise do capitalismo, que coloca nossa conjuntura atual em uma perspectiva mais ampla, juntamente com diagnósticos nítidos do recente ressurgimento do populismo de direita e o que seria necessário para uma alternativa de esquerda. Escrito por duas das principais teóricas críticas, este livro será de grande interesse para qualquer pessoa preocupada com a natureza e o futuro do capitalismo e com as questões-chave da política progressista de hoje.
“Ofereço esta análise como uma correção à moralização superficial que prevalece hoje nos círculos progressistas. O que deveria distinguir a esquerda dessas posturas é o foco nas bases estruturais fundamentais da opressão social. Ao enquadrar o problema em termos de capitalismo, compreendido como uma ordem social institucionalizada, a esquerda deveria insistir que o racismo, por exemplo, tem bases estruturais na sociedade capitalista, as quais precisam ser combatidas não apenas culturalmente, como institucionalmente, por meio da transformação das separações constitutivas que discutimos ao longo deste livro. Esta é a alternativa ao moralismo progressista que apoio: não deixar o racismo e o sexismo de lado como “superestruturais”, e sim insistir que são estruturais e estão profundamente imbricados na dominação de classe (e gênero), que não têm como ser compreendidos nem superados sem que essas dimensões sejam levadas em conta. Essa é uma vantagem adicional de nossa visão expandida do capitalismo como ordem social institucionalizada, pois mostra que não precisamos jogar a dominação de classe e a hierarquia de status uma contra a outra. Ambas são parte e parcela da sociedade capitalista, coprodutos de suas divisões estruturais. É possível e mesmo necessária uma oposição conjunta a ambas.”Nancy Fraser

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