Duas
entrevistas, dois lados da questão que nunca chegam a tocar-se. Philip
Nitschke diz que o suicídio devia fazer parte dos Direitos Humanos, Theo
Boer considera que a eutanásia na Holanda levou a uma mudança cultural
em que as pessoas “já acham que a eutanásia é a única morte boa”. Em
Portugal é esta quinta-feira que o tema é discutido no Parlamento.
“Olhem para os nossos exageros”, diz Boer. “Se as leis fossem mais
permissivas, as pessoas viveriam mais descansadas”, diz Nitschke
Texto Ana França
Philip Haig Nitschke
“Eu
tinha construído uma pequena geringonça para que o líquido entrasse no
corpo do doente, mas com o doente a pressionar o botão. Ele apertou o
botão e morreu em paz”
Philip Haig Nitschke,
de 73 anos, é ativista pela morte assistida, autor, ex-médico e
fundador e diretor do grupo pró-eutanásia Exit International. Durante
anos lutou pela eutanásia no seu país natal, a Austrália, mas a lei que a
legalizou, em 1995, no Território do Norte, durou apenas seis meses.
Nitschke foi o primeiro médico do mundo a administrar uma injeção legal,
voluntária e letal - e durante anos ele e as pessoas que o apoiaram na
sua luta foram alvo daquilo que ele considera perseguições políticas e
ofensas públicas. Em 2015 queimou a sua cédula profissional em resposta
ao que considerou a posição “opressora” do Conselho Médico da Austrália
em relação à sua liberdade de expressão. Vive na Holanda e continua a
achar que o suicídio devia fazer parte dos Direitos Humanos.
Foi
uma lei que não durou muito tempo. E também não houve muita gente a
beneficiar dela. Sim, foram seis meses, apenas quatro pessoas
conseguiram a eutanásia. Um novo governo reverteu a lei e a Austrália
regressou aos tempos medievais. O resto do mundo seguiu em frente.
Neste
momento mais leis estão a ser discutidas para outras partes da
Austrália, todas bastante conservadoras, um pouco na senda da lei
colombiana, que prevê um estágio terminal de uma doença para que a
eutanásia possa ser administrada. Porque é que diz nas suas palestras e
artigos que estas leis não são respeitadoras da individualidade de cada
um?
Talvez essas leis tenham ajudado algumas pessoas, mas há muitas que
não vão conseguir preencher os requisitos. Têm de esperar até estarem
suficientemente doentes. Se as leis fossem mais permissivas, as pessoas
viveriam mais descansadas, sabendo que podem aceder a essa opção. E
mesmo quando chegamos ao ponto de estarmos mesmo, mesmo doentes, temos
de ir ao médico, fazer exames, ver se realmente estamos assim tão
doentes. É uma espécie de exame para poder morrer, é desgastante e
stressante.
A Exit International é uma associação
que tenta garantir acesso a medicamentos para que as pessoas possam
escolher quando e como morrer. E o senhor faz parte dessa associação por
acreditar que o suicídio faz parte dos Direito Humanos. Entende o
choque que isto pode causar em algumas sociedades?
É realmente muito
mais simples do que aquilo que dizem. Temos de ser adultos e temos de
ter capacidade mental total. Reunidas estas duas condições, todos
deveríamos poder aceder à forma mais humana de dar esse passo e morrer.
Considero que temos de ver o suicídio como um direito que não está
disponível apenas para os muito, muito doentes.
O suicídio não é um crime, mas ajudar alguém a cometê-lo já é. Também discorda disto?
Não,
o suicídio não é um crime em nenhum país. Parece-me um pouco ridículo
que seja crime ajudar alguém a fazer uma coisa que não é crime.
Como
resolve o problema das pessoas que não têm capacidade de escolher, de
pedir a eutanásia, ou por estarem dementes ou tão doentes que já não
conseguem raciocinar bem?
Não vejo como é que essas
pessoas podem ser ajudadas de forma legal. É pena, mas temos de estar
conscientes, todos, quando pedimos ajuda para morrer. Mas para as outras
pessoas, mesmo aquelas que sofrem de problemas psicológicos, desde que
um psiquiatra diga que apesar dos problemas de depressão, ou outros,
essa pessoa está capaz de tomar decisões (qualquer médico dirá que há
muita gente deprimida que sabe perfeitamente o que está a fazer), então
não deve ser crime ajudar essa pessoa.
Uma
lei como aquela que está a ser discutida na Holanda, a da possibilidade
de qualquer pessoa com mais de 70 anos comprar um comprimido para poder
morrer quando desejar, pode chegar a mais países do mundo ocidental?
Não
sei. O progresso é muito lento. Neste momento esse comprimido está a
ser discutido na Holanda, e não sei sequer se vai ser aprovado. Para
chegarmos a este ponto demoramos 20 anos - e a Holanda é um sítio onde
as leis são bastante mais liberais do que no resto dos países onde a
eutanásia existe.
Theo Boer
“A eutanásia na Holanda é um caso de oferta que criou a procura. Desaconselho outros países a seguirem-nos as pisadas”
Theo Boer,
59 anos, é um dos mais famosos académicos da área da ética médica na
Europa. Esteve envolvido na discussão que antecedeu e fomentou a
necessidade da legalização da eutanásia na Holanda mas agora é contra o
que considera “os exageros que a lei produziu”. Para Boer, quem quiser
cometer suicídio tem esse direito, mas a sociedade não pode abandonar as
pessoas, porque “corremos o risco de estar a transmitir a ideia de que,
de facto, tudo é mais fácil se elas não estiverem vivas”. Quase 20 anos
após a introdução da eutanásia no seu país, Boer diz que a sociedade
mudou de tal forma que a eutanásia se institucionalizou como parte do
ciclo de vida humano.
Casos como o de Aurelia
Brouwers, a rapariga que conseguiu o direito ao suicídio assistido por
estar extremamente deprimida, são raros na Holanda, apesar de gerarem
muita atenção mediática por serem mortes de pessoas jovens, sem qualquer
problema de saúde visível. Mas a dor psicológica, para eles, era tão
insuportável como a física. Porque é que um doente terminal de cancro
tem mais direito ao fim do sofrimento do que uma pessoa que luta contra
uma depressão há décadas, tendo já tentando por todos os meios possíveis
curar-se?
Tem razão quando diz que em ambos os
casos a dor pode ser insuportável. No caso da dor psiquiátrica talvez
seja ainda pior, porque o desespero total e permanente pode durar anos,
décadas mesmo, não é agudo, enquanto a dor de um doente terminal pode
ser tratada com paliativos a acaba ao fim de umas semanas. Mesmo assim
sou cético em relação à eutanásia para casos de doença psicológica,
porque eu mesmo conheço casos, como o de uma amiga próxima, que depois
de ter desejado morrer durante mais de dez anos, conseguiu erguer-se.
Além disso, considero que a eutanásia para terminar sofrimento
psicológico pode dar a essas pessoas a ideia de que a sociedade os
considera para lá de qualquer ajuda e que, de facto, é melhor morrerem.
Em
alguns textos que escreveu fala do problema da “imitação”, de mais
pessoas a pedirem para serem eutanasiadas porque isso se tornou mais
comum, mais falado, mais acessível. Isso acontece mesmo? Há números?
Não
tenho números sobre isso mas há um estudo que pode ajudar a entender de
que forma esta ‘tendência’ para a morte se está a generalizar. Entre
2009 e 2018, anos em que a eutanásia se tornou uma possibilidade para as
pessoas que já tinham mais queda para essa opção - doentes
psiquiátricos, doentes crónicos, idosos - o número de suicídios subiu
37%, o que não se verifica em outros países semelhantes. O que eu também
sei é que hoje as pessoas estão muito mais exigentes com os médicos,
podem mesmo ficar zangadas se veem o seu pedido de eutanásia negado. Um
psiquiatra com quem trabalhei disse-me que se tivesse algum dia aceitado
praticar eutanásia na ala dele, no hospital, ao outro dia, todos os
pacientes lha pediriam.
A discussão sobre a
possível introdução no mercado de um comprimido para todas as pessoas
com mais de 70 anos que desejam acabar com a vida está a galvanizar o
seu país. Imagino que esteja totalmente contra esta possibilidade.
Não
sou contra o facto de que cada um tome providências em relação à sua
própria morte. Não podemos obrigar ninguém a viver, muito menos aqueles
que estão conscientes e podem tomar as suas próprias decisões. Mas
quando as pessoas falam de ‘autonomia’ com ‘A’ grande então creio que
têm de tomar medidas elas mesmas, apesar de isso ser profundamente
trágico. A sociedade não deve disponibilizar um comprimido-suicídio aos
seus idosos. A mensagem que estaríamos a passar seria de um total
cinismo. Seria como se disséssemos: ‘não há problema se vocês já não
estiverem por cá’. Se fossem mais novos, tudo se faria para que fossem
incluídos num programa de prevenção de suicídio, mas assim parece que
estão a fazer parte de um programa de promoção do suicídio. Além disso, é
discriminatório: porque é que eu, que tenho 59 anos, não tenho direito a
sentir que a minha vida já está completa e a comprar um desses
comprimidos?
Fez parte das primeiras comissões
de análise posterior aos casos de eutanásia e apoiou a lei que entrou em
vigor em 2002. O que é que o levou para o outro lado da barricada?
No
início achei que o nosso sistema conseguiria manter os números
controlados e durante cinco anos assim foi. Mas desde 2007 os números de
mortes por eutanásia triplicaram e o leque de razões para a sua
administração aumentou bastante. Há pessoas que neste momento consideram
que a eutanásia é a única morte boa possível. Além disso há um problema
com a transparência, as ‘zonas cinzentas’ não estão tão expostas, tão
documentadas, como deviam. Há centenas de mortes induzidas, algumas até
sem pedido expresso do doente, que não são reportadas e não chegam às
comissões. A eutanásia na Holanda é um caso de oferta que criou a
procura.
Ainda acredita na validade da eutanásia ou, se pudesse, reverteria a lei?
Como
democrata aceito a lei atual e só pensaria em revertê-la através de uma
maioria parlamentar. Mas desaconselho outros países a seguirem-nos as
pisadas. A discussão sobre a eutanásia apareceu entre os anos 70 e 80,
quando as mortes na Holanda eram agoniantes. Desde então os cuidados
paliativos tornaram-se impecáveis e estou convencido que se tivéssemos
tido nos anos 80 os paliativos que temos hoje, a lei nunca teria sido
aprovada. E claro que em casos em que os paliativos não funcionem, ou
que os medicamentos necessários também possam causar sofrimento ou mesmo
morte, ficaria à consideração do médico acabar com o sofrimento da
pessoa. Isso acontece em todos os países, de qualquer forma.
Na
sua experiência, de que forma mudou a Holanda desde a introdução da
lei? Falo de mudanças culturais e comportamentais relacionadas com a
morte.
Penso que a eutanásia mudou a forma como os
holandeses concebem a própria morte, da mesma forma que a possibilidade
de viajar de avião nos mudou a forma de entender o trabalho, o lazer, a
cultura, o comércio, a imigração. O impacto é muito grande. A morte
tornou-se um projeto e a nossa tolerância ao sofrimento e à
vulnerabilidade está a decrescer.
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