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quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

EUTANÁSIA
Nitschke e Boer. Entrevistas ao médico que fez a primeira eutanásia legal e ao professor que denuncia os “exageros” holandeses
<span class="creditofoto">A discussão sobre a eutanásia existe há décadas, pelo menos no mundo ocidental. São duas visões opostas que quase nunca se encontram Foto Getty</span>
A discussão sobre a eutanásia existe há décadas, pelo menos no mundo ocidental. São duas visões opostas que quase nunca se encontram Foto Getty
Duas entrevistas, dois lados da questão que nunca chegam a tocar-se. Philip Nitschke diz que o suicídio devia fazer parte dos Direitos Humanos, Theo Boer considera que a eutanásia na Holanda levou a uma mudança cultural em que as pessoas “já acham que a eutanásia é a única morte boa”. Em Portugal é esta quinta-feira que o tema é discutido no Parlamento. “Olhem para os nossos exageros”, diz Boer. “Se as leis fossem mais permissivas, as pessoas viveriam mais descansadas”, diz Nitschke
Texto Ana França
Philip Haig Nitschke
“Eu tinha construído uma pequena geringonça para que o líquido entrasse no corpo do doente, mas com o doente a pressionar o botão. Ele apertou o botão e morreu em paz”
Philip Haig Nitschke, de 73 anos, é ativista pela morte assistida, autor, ex-médico e fundador e diretor do grupo pró-eutanásia Exit International. Durante anos lutou pela eutanásia no seu país natal, a Austrália, mas a lei que a legalizou, em 1995, no Território do Norte, durou apenas seis meses. Nitschke foi o primeiro médico do mundo a administrar uma injeção legal, voluntária e letal - e durante anos ele e as pessoas que o apoiaram na sua luta foram alvo daquilo que ele considera perseguições políticas e ofensas públicas. Em 2015 queimou a sua cédula profissional em resposta ao que considerou a posição “opressora” do Conselho Médico da Austrália em relação à sua liberdade de expressão. Vive na Holanda e continua a achar que o suicídio devia fazer parte dos Direitos Humanos.
Foi uma lei que não durou muito tempo. E também não houve muita gente a beneficiar dela. Sim, foram seis meses, apenas quatro pessoas conseguiram a eutanásia. Um novo governo reverteu a lei e a Austrália regressou aos tempos medievais. O resto do mundo seguiu em frente.
Neste momento mais leis estão a ser discutidas para outras partes da Austrália, todas bastante conservadoras, um pouco na senda da lei colombiana, que prevê um estágio terminal de uma doença para que a eutanásia possa ser administrada. Porque é que diz nas suas palestras e artigos que estas leis não são respeitadoras da individualidade de cada um?
Talvez essas leis tenham ajudado algumas pessoas, mas há muitas que não vão conseguir preencher os requisitos. Têm de esperar até estarem suficientemente doentes. Se as leis fossem mais permissivas, as pessoas viveriam mais descansadas, sabendo que podem aceder a essa opção. E mesmo quando chegamos ao ponto de estarmos mesmo, mesmo doentes, temos de ir ao médico, fazer exames, ver se realmente estamos assim tão doentes. É uma espécie de exame para poder morrer, é desgastante e stressante.
A Exit International é uma associação que tenta garantir acesso a medicamentos para que as pessoas possam escolher quando e como morrer. E o senhor faz parte dessa associação por acreditar que o suicídio faz parte dos Direito Humanos. Entende o choque que isto pode causar em algumas sociedades?
É realmente muito mais simples do que aquilo que dizem. Temos de ser adultos e temos de ter capacidade mental total. Reunidas estas duas condições, todos deveríamos poder aceder à forma mais humana de dar esse passo e morrer. Considero que temos de ver o suicídio como um direito que não está disponível apenas para os muito, muito doentes.
O suicídio não é um crime, mas ajudar alguém a cometê-lo já é. Também discorda disto?
Não, o suicídio não é um crime em nenhum país. Parece-me um pouco ridículo que seja crime ajudar alguém a fazer uma coisa que não é crime.
Como resolve o problema das pessoas que não têm capacidade de escolher, de pedir a eutanásia, ou por estarem dementes ou tão doentes que já não conseguem raciocinar bem?
Não vejo como é que essas pessoas podem ser ajudadas de forma legal. É pena, mas temos de estar conscientes, todos, quando pedimos ajuda para morrer. Mas para as outras pessoas, mesmo aquelas que sofrem de problemas psicológicos, desde que um psiquiatra diga que apesar dos problemas de depressão, ou outros, essa pessoa está capaz de tomar decisões (qualquer médico dirá que há muita gente deprimida que sabe perfeitamente o que está a fazer), então não deve ser crime ajudar essa pessoa.
Uma lei como aquela que está a ser discutida na Holanda, a da possibilidade de qualquer pessoa com mais de 70 anos comprar um comprimido para poder morrer quando desejar, pode chegar a mais países do mundo ocidental?
Não sei. O progresso é muito lento. Neste momento esse comprimido está a ser discutido na Holanda, e não sei sequer se vai ser aprovado. Para chegarmos a este ponto demoramos 20 anos - e a Holanda é um sítio onde as leis são bastante mais liberais do que no resto dos países onde a eutanásia existe.
Theo Boer
“A eutanásia na Holanda é um caso de oferta que criou a procura. Desaconselho outros países a seguirem-nos as pisadas”
Theo Boer, 59 anos, é um dos mais famosos académicos da área da ética médica na Europa. Esteve envolvido na discussão que antecedeu e fomentou a necessidade da legalização da eutanásia na Holanda mas agora é contra o que considera “os exageros que a lei produziu”. Para Boer, quem quiser cometer suicídio tem esse direito, mas a sociedade não pode abandonar as pessoas, porque “corremos o risco de estar a transmitir a ideia de que, de facto, tudo é mais fácil se elas não estiverem vivas”. Quase 20 anos após a introdução da eutanásia no seu país, Boer diz que a sociedade mudou de tal forma que a eutanásia se institucionalizou como parte do ciclo de vida humano.
Casos como o de Aurelia Brouwers, a rapariga que conseguiu o direito ao suicídio assistido por estar extremamente deprimida, são raros na Holanda, apesar de gerarem muita atenção mediática por serem mortes de pessoas jovens, sem qualquer problema de saúde visível. Mas a dor psicológica, para eles, era tão insuportável como a física. Porque é que um doente terminal de cancro tem mais direito ao fim do sofrimento do que uma pessoa que luta contra uma depressão há décadas, tendo já tentando por todos os meios possíveis curar-se?
Tem razão quando diz que em ambos os casos a dor pode ser insuportável. No caso da dor psiquiátrica talvez seja ainda pior, porque o desespero total e permanente pode durar anos, décadas mesmo, não é agudo, enquanto a dor de um doente terminal pode ser tratada com paliativos a acaba ao fim de umas semanas. Mesmo assim sou cético em relação à eutanásia para casos de doença psicológica, porque eu mesmo conheço casos, como o de uma amiga próxima, que depois de ter desejado morrer durante mais de dez anos, conseguiu erguer-se. Além disso, considero que a eutanásia para terminar sofrimento psicológico pode dar a essas pessoas a ideia de que a sociedade os considera para lá de qualquer ajuda e que, de facto, é melhor morrerem.
Em alguns textos que escreveu fala do problema da “imitação”, de mais pessoas a pedirem para serem eutanasiadas porque isso se tornou mais comum, mais falado, mais acessível. Isso acontece mesmo? Há números?
Não tenho números sobre isso mas há um estudo que pode ajudar a entender de que forma esta ‘tendência’ para a morte se está a generalizar. Entre 2009 e 2018, anos em que a eutanásia se tornou uma possibilidade para as pessoas que já tinham mais queda para essa opção - doentes psiquiátricos, doentes crónicos, idosos - o número de suicídios subiu 37%, o que não se verifica em outros países semelhantes. O que eu também sei é que hoje as pessoas estão muito mais exigentes com os médicos, podem mesmo ficar zangadas se veem o seu pedido de eutanásia negado. Um psiquiatra com quem trabalhei disse-me que se tivesse algum dia aceitado praticar eutanásia na ala dele, no hospital, ao outro dia, todos os pacientes lha pediriam.
A discussão sobre a possível introdução no mercado de um comprimido para todas as pessoas com mais de 70 anos que desejam acabar com a vida está a galvanizar o seu país. Imagino que esteja totalmente contra esta possibilidade.
Não sou contra o facto de que cada um tome providências em relação à sua própria morte. Não podemos obrigar ninguém a viver, muito menos aqueles que estão conscientes e podem tomar as suas próprias decisões. Mas quando as pessoas falam de ‘autonomia’ com ‘A’ grande então creio que têm de tomar medidas elas mesmas, apesar de isso ser profundamente trágico. A sociedade não deve disponibilizar um comprimido-suicídio aos seus idosos. A mensagem que estaríamos a passar seria de um total cinismo. Seria como se disséssemos: ‘não há problema se vocês já não estiverem por cá’. Se fossem mais novos, tudo se faria para que fossem incluídos num programa de prevenção de suicídio, mas assim parece que estão a fazer parte de um programa de promoção do suicídio. Além disso, é discriminatório: porque é que eu, que tenho 59 anos, não tenho direito a sentir que a minha vida já está completa e a comprar um desses comprimidos?
Fez parte das primeiras comissões de análise posterior aos casos de eutanásia e apoiou a lei que entrou em vigor em 2002. O que é que o levou para o outro lado da barricada?
No início achei que o nosso sistema conseguiria manter os números controlados e durante cinco anos assim foi. Mas desde 2007 os números de mortes por eutanásia triplicaram e o leque de razões para a sua administração aumentou bastante. Há pessoas que neste momento consideram que a eutanásia é a única morte boa possível. Além disso há um problema com a transparência, as ‘zonas cinzentas’ não estão tão expostas, tão documentadas, como deviam. Há centenas de mortes induzidas, algumas até sem pedido expresso do doente, que não são reportadas e não chegam às comissões. A eutanásia na Holanda é um caso de oferta que criou a procura.
Ainda acredita na validade da eutanásia ou, se pudesse, reverteria a lei?
Como democrata aceito a lei atual e só pensaria em revertê-la através de uma maioria parlamentar. Mas desaconselho outros países a seguirem-nos as pisadas. A discussão sobre a eutanásia apareceu entre os anos 70 e 80, quando as mortes na Holanda eram agoniantes. Desde então os cuidados paliativos tornaram-se impecáveis e estou convencido que se tivéssemos tido nos anos 80 os paliativos que temos hoje, a lei nunca teria sido aprovada. E claro que em casos em que os paliativos não funcionem, ou que os medicamentos necessários também possam causar sofrimento ou mesmo morte, ficaria à consideração do médico acabar com o sofrimento da pessoa. Isso acontece em todos os países, de qualquer forma.
Na sua experiência, de que forma mudou a Holanda desde a introdução da lei? Falo de mudanças culturais e comportamentais relacionadas com a morte.
Penso que a eutanásia mudou a forma como os holandeses concebem a própria morte, da mesma forma que a possibilidade de viajar de avião nos mudou a forma de entender o trabalho, o lazer, a cultura, o comércio, a imigração. O impacto é muito grande. A morte tornou-se um projeto e a nossa tolerância ao sofrimento e à vulnerabilidade está a decrescer.

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