O que é o marxismo-leninismo?
Por Florestan Fernandes via Overquil
O texto a seguir foi retirado da introdução do volume “Lenin; Política”, que faz parte da importante (e esgotada!) coleção Grandes Cientistas Sociais, organizada por Florestan Fernandes e editada pela Ática no fim dos anos 70.
Desde o inicio de suas atividades
intelectuais e políticas, Lênin sempre se considerou um marxista – e, o
que é mais importante, sempre procurou ser um marxista ortodoxo. Por
isso, não se contentou com a rica produção socialista que encontrou à
sua disposição como jovem: foi diretamente aos textos de Marx e Engels,
estudou-os sistematicamente e aos poucos tentou dominar também os
autores que estavam nas raízes da formação do marxismo. A sua primeira
obra de grande envergadura, O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia,
evidencia três coisas: 1) completo domínio crítico das teorias
econômicas de Marx e do materialismo histórico; 2) aplicação exclusiva
dessas teorias na descrição e interpretação dos fatos (istp é, sem
qualquer modalidade erudita de ecletismo); 3) as teorias econômicas de
Marx forneciam “hipóteses diretrizes”, estando longe de ser a fonte de
um dogmatismo estéril: o que assegurava a marcha criadora da
investigação, que se abria para a descoberta tanto do que era geral,
quanto para o que era peculiar à manifestação do capitalismo na Rússia.
Esse estilo de trabalho aparece
com igual maestria nos escritos especificamente políticos da época,
principalmente naqueles em que faz a crítica marxista do “populismo” e
“economicismo” no movimento socialista russo. Portanto, as aplicações do
marxismo ao plano prático revelam o mesmo espírito de identificação
congruente, a um tempo flexível mas intransigente, com os princípios do
socialismo revolucionário. Que Fazer?, como obra de síntese e
de superação das experiências políticas acumuladas durante o período de
formação, constitui a face política das descobertas históricas e
econômicas contidas em O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia.
Sua total fidelidade ao marxismo não pressupunha a “repetição de Marx”
ou a ossificação da dialética, e sim a busca de caminhos novos, que só o
marxismo podia desvendar, desde que aplicado de forma precisa, exigente
e imaginativa, como um saber vivo, em intrínseca conexão com a vida.
Na cisão de 1903, vários bolcheviques,
mais intimamente associados a Lênin e à sua liderança política, foram
designados como “leninistas” (palavra que reaparece em outros contextos e
mesmo, de passagem, em escritos de Lênin). No entanto, após a
reviravolta de abril e a tomada do poder, o “leninismo” ganhou expressão
política, que se acentuou graças á luta pela sucessão de Lênin após sua
morte. O “leninismo”, assim entendido, significa pouca coisa: na
primeira acepção, “seguidor de Lênin”, no sentido de uma oposição
intransigente ao reformismo, e ao oportunismo; na segunda acepção,
alguém que fazia profissão de fé diante da natureza revolucionária do
partido comunista, da ditadura do proletariado e do Estado soviético (e,
implicitamente, no desdobramento das etapas de transição para o
socialismo e para o comunismo). Ora, se isso fosse tudo, não haveria
razão para o uso crescente da expressão marxismo-leninismo, que
finalmente se universalizou e se viu consagrada de modo definitivo. O
legado de Lênin transformou o marxismo e é essa transformação que nos
interessa aqui.
Sem subestimar-se a contribuição teórica
de Lênin (crucial em vários pontos para o enriquecimento e o
aprofundamento do marxismo: como no estudo da penetração do capitalismo
na agricultura, das condições e efeitos do desenvolvimento desigual ou
do imperialismo, na explicação da guerra e da revolução, na
sistematização das explicações marxistas do Estado e da própria utopia
marxista, tão mal representada e conhecida antes dele, etc.), é no
terreno da prática que se acha o eixo da transmutação leninista do
marxismo. Isto não quer dizer que esta prática estivesse desligada da
teoria – pois nunca esteve ou poderia estar, no pensamento
dialético-materialista – nem tampouco que Marx, Engels e seus seguidores
tivessem negligenciado, na teoria e na ação, as várias dimensões da
pratica (especialmente a política). Mas significa, isso sim, que Lênin
se impôs como tarefa de sua vida a adequação instrumental, institucional
e política do marxismo à concretização da revolução proletária. O
marxismo, depois de Lênin, não é mais a mesma coisa, porque ele
incorporou um “modelo” de como passar da ditadura burguesa à ditadura do
proletariado.
Esse modelo desloca o âmago do
marxismo para a reflexão política, ou seja, para as condições concretas
da ação política e da transformação política, quando se focaliza dialeticamente as relações de classes como relações de poder (a
luta de classes como um processo que conduz à formação e ao controle do
que destrói e instaura a transição para o socialismo). Antes de Lênin,
semelhante elemento político estava incluído no marxismo como uma
previsão e, também, como um momento da vontade política. Com Lênin, esse
elemento converte-se no ponto central da indagação marxista e, do
próprio marxismo como movimento político. Sob as condições mais ou menos
paralisadoras da democracia burguesa, como dar ao proletariado – classe
que pode arrastar atrás de si a massa não-possuidora e constituir-se em
núcleo hegemônico de uma maioria atuante – a capacidade de converter
seu poder potencial em poder real? Absorveu-se, assim, no problema político da sociedade de classes; e, como marxista, não apenas para explicar como a
minoria pode suplantar a maioria e submetê-la, mesmo sob o “capitalismo
agonizante”, mas também para descobrir como transformar o inócuo poder
potencial da maioria em poder especificamente político, concentrado e
disciplinado de forma revolucionária.
Atento ás estruturas de poder e aos
efeitos políticos da dominação de classe, inerentes à democracia
burguês, Lênin chegou rapidamente à conclusão de que a revolução
proletária possui um padrão histórico próprio. Em contraste com a
revolução burguês, ela não pode iniciar-se antes da tomada do poder pelo
proletariado e da dominação pela maioria. Por isso, o problema
estratégico de luta pelo poder tinha de ser proposto em termos do uso,
revolucionário do espaço político que a classe operária pode conquistar e
manejar com relativa autonomia, ilegal e legalmente, no seio da
sociedade de classes. Como a dominação burguesa também implica
socialização ideológica e politica do resto da sociedade pela burguesia,
tal uso do espaço político impunha, naturalmente, certas condições
básicas: 1) formação de uma minoria contestadora fortemente organizada,
capaz de atuar legalmente e ilegalmente, sem vacilações, como vanguarda
revolucionária da classe operária; 2) a ruptura com tosas as formas
diretas ou indiretas e visíveis ou invisíveis de acomodação à ordem
democrática burguesa; 3) a educação política do proletariado e, na
medida do possível, das massas pobres e da pequena burguesia, através de
situações e de reivindicações concretas, do desenvolvimento da
consciência de classe e da agudização (aos níveis econômico,
sócio-cultural e político) dos conflitos de classe. Isso punha em
primeiro plano a questão da organização do partido revolucionário do
proletariado e de sua orientação política. E, de outro lado, exigia uma
nova mentalidade e uma nova prática política nas relações do partido com
sua base e com a massa.
Com referência à organização do partido,
Lênin fixou normas de racionalização que deviam ser iguais ou superiores
às que têm vigência na grande empresa capitalista, no exército moderno
ou no Estado democrático burguês. Em conseqüência, as tarefas de
agitação e propaganda podiam irradiar-se por toda a sociedade, embora
concentrando-se com maior intensidade na classe operária; e as tarefas
políticas, imediatas e de largos prazos, podiam ser definidas segundo
critérios específicos de flexibilidade e de eficácia. A idéia básica
consistia em que a revolução não nasce pronta e acabada – o partido
revolucionário do proletariado deveria travar duas batalhas, clandestina
ou abertamente, tendo em vista as combinações que poderiam favorecer,
em determinado momento, ou o fortalecimento da democracia burguesa, ou o
deslocamento desta no sentido de uma democracia operária, ou a tomada
pura e simples do poder.
Todas essas estratégias foram exploradas,
com as táticas correspondentes, e Lênin foi o mestre das principais
diretrizes (embora a sua produção intelectual e política, nessa direção,
aguarde estudo sistemático). Por sua vez, para cumprir essa missão era
indispensável interromper a infiltração ou a corrupção burguesa,
impedindo as soluções de compromisso ou de aparente “revolução dentro da
ordem” (ambas de exclusivo interesse para a dominação burguesa e a
consolidação do status quo). Daí a necessidade impetuosa de
combater sem tréguas o oportunismo, o reformismo e o ultra-esquerdismo,
por vários motivos dissolventes do espírito revolucionário, da atuação
revolucionária racional e da solidariedade política do proletariado. Por
fim, uma vanguarda revolucionária do proletariado não podia nem devia
representar-se e comporta-se como uma elite e segundo valores elitistas.
Se ela devia contribuir para a expansão da consciência de classe do
proletariado de “fora para dentro” (isto é, imprimindo às suas tarefas
políticas um teor pedagógico), ela nunca foi concebida por Lênin, em si
mesma, como o pólo decisivo. Este tinha de ser, naturalmente, o
proletariado, como sujeito da ação revolucionária em escala coletiva, já
que de sua impulsão dependeria a vitória da revolução proletária ou da
contra-revolução. Por conseguinte, as relações do partido revolucionário
do proletariado com sua base e com a massa eram definidas segundo um
esquema dialético: para dirigir o processo político, aquele partido
teria de sintonizar-se com a classe operária e com as massas,
acompanhando as evoluções de sua aprendizagem e de sua socialização
política através das flutuações da luta de classes.
Apesar da extrema condensação, essas
formulações sugerem como Lênin, a partir do marxismo e dentro do
marxismo, quebrou a circularidade política que pesava sobre a ação
revolução proletária. Ele ignorou o peso paralisante da
existência ou inexistência de “condições objetivas” que permitissem a
revolução proletária. Fez isso deslocando em várias direções o
aproveitamento revolucionário das condições objetivas existentes (na
consolidação da democracia burguesa, na acentuação da influência
operária dentro da democracia burguesa ou na criação de uma democracia
operária sem a destruição do Estado proletário, etc.), sempre em
direções que atendessem, a curto e longo prazos, os alvos finais de
destruição do capitalismo e de transição para o socialismo. Doutro lado
deu maior ênfase (e mesmo maior peso relativo) ao controle político das
“condições subjetivas”, mais suscetíveis de tratamento político
deliberado, segundo manipulações estratégicas e táticas. Nessa esfera,
tanto era possível aproveitar a influência direta da vanguarda
revolucionária sobre o proletariado e as massas, quanto os efeitos
educativos, seja da ineficácia do Estado democrático burguês para
atender ás reivindicações do proletariado, seja de uma vitória eventual
da contra-revolução. A vantagem de dispensar maior atenção às “condições
subjetivas” procedia de outro resultado previsível: a rápida
transformação do proletariado em classe politicamente consciente e apta
para proceder à reeducação política do resto da maioria. Assim, em
“condições objetivas” aparentemente desvantajosas, um país atrasado como
a Rússia logrou realizar a primeira revolução proletária da história.
As revoluções de 1905 e de 1917
forneceram à Lênin base política para a ampliação e o aperfeiçoamento
desse “modelo” básico. A primeira revolução, em particular, submeteu à
prova a própria consistência do “modelo”. O comportamento do
proletariado e do campesinato pobre demonstrou que ele era correto: a
vanguarda revolucionária não ficou sozinha (e por vezes andou atrás das
massas!). Portanto, dadas as condições adequadas de organização e de
orientação política, o partido revolucionário do proletariado podia
colocar-se à frente do movimento político revolucionário e dirigi-lo. De
outro lado, eclodiram e multiplicaram-se greves de massa, econômicas e
políticas, que abriram os olhos de Lênin e dos socialistas europeus para
as novas técnicas revolucionárias que emergiam, as quais envolviam a
contraviolência armada. À medida que os sovietes se firmam, por sua vez,
como o equivalente russo da Comuna, as reflexões de Lênin se voltam
para os aspectos institucionais e militares da tomada do poder. O
soviete oferecia uma solução para a pressão democrático-revolucionária
do proletariado, de alguns setores do campesinato ou das massas urbanas.
Todavia, ao longo do processo ficou patente que os sovietes não
detinham a força real e que não podiam, por si mesmos, suprimir a
dominação da classe burguesa. Ainda aí voltava a ser decisivo o “modelo”
central esboçado acima. Só que a situação compelia a novas definições,
relacionadas com a natureza e variedade dos meios institucionais de que
se deveria valer a ditadura do proletariado para atingir seus objetivos.
Os sovietes permitiam resolver o problema
das fontes e da natureza do poder proletário, que deveria emanar da
maioria e exprimi-la o mais democraticamente possível, em sua estrutura
interna. As fases iniciais, porém, teriam de ser de dominação exclusiva e
plena da maioria (portanto, não de abolição imediata das classes, que
não iriam desaparecer por um passe de mágica, mas de sua destruição
progressiva). Lênin formula o Estado desse período como um Estado
proletário, fundado no poder real da maioria (isto é, o poder
soviético), mas submetido à necessidade inelutável de construir uma
fortíssima maquinaria estatal, instrumentalizada pelo partido
revolucionário do proletariado e pelos sovietes. Antes de promover a
transição para o socialismo, esse Estado proletário ou soviético deveria
proceder ao reajustamento das “condições objetivas”, levando a
revolução proletária a todas as estruturas econômicas, sociais,
culturais e políticas da sociedade russa.
Aí está, em linhas gerias, o “modelo”
ampliado de Lênin, quanto à passagem da ditadura burguesa à ditadura do
proletariado. Para o marxismo, a contribuição de Lênin representa um
acréscimo substantivo em duas direções. Primeiro, ela repôs o marxismo
como política em suas bases revolucionárias, avançando do conhecimento
da realidade política da sociedade de classes para o modo de organizar
politicamente a sua transformação e destruição, como etapa preliminar à
instauração do socialismo. Segundo, ela traz consigo a primeira
descrição teórica e a primeira formulação prática da revolução
proletária como processo histórico e vivido. Embora Lênin se preocupasse
mais com as condições, as técnicas e os processos políticos de
intervenção revolucionária na realidade, limitando as formalizações
abstratas ao conhecimento teórico essencial para atingir tais fins, suas
indagações e reflexões introduzem no marxismo um tratamento mais livre e
dialético do político.
Sem ignorar que qualquer transformação
política possui uma base econômica e social concreta, ele desvendou,
mais que os outros pensadores marxistas, o grau de autonomia relativa do
político e a intensificação dessa autonomia nos momentos de crise e
revolução. Com ele, o marxismo torna-se politicamente operacional, o que
explica porque, depois dele, converte-se em marxismo-leninismo.
in LavraPalavra
Sem comentários:
Enviar um comentário