Žižek: Trump versus Sanders e a implosão do sistema bipartidário nos EUA
Os EUA estão adentrando uma guerra civil ideológica na qual não há chão comum ao qual ambas as partes da disputa podem recorrer. Mas não nos enganemos: o verdadeiro conflito não está se dando entre as duas siglas do bipartidarismo estadunidense, mas no próprio interior de cada um dos dois partidos.
Por Slavoj Žižek.
* TEXTO ENVIADO DIRETAMENTE PELO AUTOR PARA SUA COLUNA NO BLOG DA BOITEMPO. A TRADUÇÃO É DE ARTUR RENZO.
Duas semanas atrás, quando promovia seu
novo filme na Cidade do México, Harrison Ford disse que “A América
perdeu sua liderança moral e credibilidade”.1 Será
mesmo? Mas afinal, quando foi que os EUA exerceram liderança moral
sobre o mundo? Na gestão Reagan, na gestão Bush? Os Estados Unidos
perderam o que nunca tiveram. Ou seja, perderam a ilusão (daí o termo
“credibilidade” na colocação do ator) de que detinham essa liderança
moral. Com Trump, só se tornou visível aquilo que desde sempre já era
verdadeiro. Em 1948, logo no início da Guerra Fria, essa verdade foi
formulada com um brutal franqueza por George Kennan:
“Nós [os EUA] detemos
50 por cento da riqueza mundial, mas representamos apenas 6,3 por cento
de sua população. Nessa situação, nossa verdadeira tarefa no período que
se abre […] é manter essa posição de disparidade. Para fazê-lo,
precisamos abrir mão de toda e qualquer sentimentalidade […], devemos
parar de pensar em direitos humanos, elevação de padrões de vida e
democratização.”2
Aqui revela-se, em termos muito mais claros e honestos, o que Trump efetivamente quer dizer com o slogan “America first!”
(“Os EUA em primeiro lugar!”). Por isso não devemos nos chocar ao ler
que “a gestão Trump, que assumiu a Presidência prometendo acabar com
‘guerras infindáveis’ está agora adotando armas proibidas em mais de 160
países, e se preparando para utilizá-las no futuro. Bombas de
fragmentação e minas terrestres antipessoal, explosivos mortais
conhecidos por mutilar e matar civis muito depois de terminados os
combates, tornaram-se integrais aos futuros planos de Guerra do
Pentágono.”3 Aqueles
que se mostram surpresos diante de notícias como essa são simplesmente
hipócritas. Em nosso mundo invertido, Donald Trump é considerado
inocente (não sofreu impeachment) ao passo que Julian Assange é considerado culpado (por revelar crimes do Estado).
Mas, afinal, o que é que está ocorrendo
agora? É verdade que Trump exemplifica a nova figura de um líder
político abertamente obsceno que desdenha das regras básicas de decência
e de abertura democrática. Quem explicitou a lógica que está por trás
das ações de Trump foi Alan Dershowitz (entre outras coisas, o defensor
da legalização da tortura), que recentemente “defendeu dentro da própria
casa do Senado que se um político pensa que sua reeleição for algo de
interesse nacional, quaisquer ações que ele tomar visando tal fim não
podem, por definição, ser passíveis de impeachment. ‘E se um
presidente tiver feito algo que ele acredita irá ajudá-lo a garantir a
eleição, no interesse público, esse não pode ser o tipo de quid pro quo que resulta em impeachment’.”4 O caráter de um poder livre de qualquer controle democrático sério é aqui claramente explicitado.
O que testemunhamos nos debates em curso a respeito do impeachment
de Trump é um exemplo da dissolução da substância ética comum
compartilhada que torna possível o diálogo polêmico argumentativo. Os
EUA estão adentrando uma guerra civil ideológica na qual não há chão
comum ao qual ambas as partes da disputa podem recorrer – quanto mais
cada lado elabora sua posição, mais fica claro que nenhum diálogo, mesmo
que polêmico, é sequer possível. Não nos fascinemos demais pela
dinâmica teatral do processo do impeachment (Trump se recusando
a cumprimentar Nancy Pelosi, e ela em resposta rasgando uma cópia de
seu Discurso sobre o Estado da União): o verdadeiro conflito não está se
dando entre as duas siglas do bipartidarismo estadunidense, mas no
próprio interior de cada um dos dois partidos
Os EUA estão agora passando de um Estado
bi-partidário para um Estado tetra-partidário. Há efetivamente quatro
partidos preenchendo o espaço político: Republicanos do establishment, Democratas do establishment, populistas da alt Right
e socialistas democráticos. Já há ofertas de coalizões transpondo as
linhas partidárias: Joe Biden deu a entender que nomearia como
vice-presidente um republicano moderado, ao passo que Steve Bannon
chegou a mencionar um par de vezes seu ideal de uma coalizção entre
Trump e Sanders. A grande diferença é que, enquanto o populismo de Trump
facilmente afirmou sua hegemonia sobre o establishment republicano
(aliás uma prova clara, se é que ainda precisava de uma, de que, apesar
de toda a barulheira de Bannon contra o “sistema”, o apelo de Trump aos
trabalhadores comuns nunca passou de uma mentira), o racha no interior
do partido Democrata está ficando cada vez mais forte – não é de se
espantar visto que, como já discutimos nesta coluna, a luta entre o establishment Democrata e a ala de Sanders é a única verdadeira disputa política atualmente em curso.
Para usar um pouco de jargão teórico,
estamos portanto lidando com dois antagonismos (“contradições”, se
quiser): um entre Trump e o establishment liberal (foi disso que tratou o processo do impeachment), e outra entre a ala de Sanders do Partido Democrata e todas as demais. A articulação pelo impeachment
de Trump foi uma tentativa desesperada de recuperar a liderança moral e
credibilidade dos EUA – um exercício cômico de hipocrisia. É por isso
que todo o fervor moral do establishment Democrata não deveria
nos enganar: a obscenidade aberta de Trump só explicitou aquilo que
sempre esteve lá. O campo de Sanders enxerga isso com clareza: não há
caminho de volta, a vida política dos EUA precisa ser radicalmente
reinventada.
Mas será que Sanders representa uma
verdadeira alternativa, ou, como alegam alguns “esquerdistas radicais”,
ele não passaria um social democrata (um tanto moderado) que no final
das contas quer mesmo salvar o sistema? A resposta é que esse dilema em
si é falso: os socialistas democráticos começaram um movimento de massa
de radical redespertar, e o desfecho de movimentos como esses nunca está
predestinado. Apenas uma coisa é certa: a pior postura imaginável é
aquela adotada por certos “esquerdistas radicais” ocidentais que tendem a
desdenhar a classe trabalhadora nos países desenvolvidos como uma mera
“aristocracia dos trabalhadores” que vive da exploração do Terceiro
Mundo e está enredada em ideologias racistas-chauvinistas. Na visão
deles, a única possível mudança radical viria de um “proletariado
nômade” (imigrantes, refugiados e os pobres do Terceiro Mundo) entendido
como agente revolucionário (eventualmente ligado a alguns intelectuais
de classe média empobrecidos nos países desenvolvidos). Mas será que
esse diagnóstico para em pé?
É verdade que a situação de hoje é
global, mas não nesse sentido maoista simplista de opor nações burguesas
a nações proletárias. Os imigrantes são subproletários, sua posição é
muito específica: não são explorados no sentido marxista clássico e como
tal não estão predestinados a serem agentes de mudança radical.
Consequentemente, considero essa escolha “radical” uma escolha suicida
para a esquerda. É preciso apoiar Sanders incondicionalmente.
A batalha será cruel, a campanha contra Sanders será muito mais brutal do que a que foi travada contra Corbyn no Reino Unido.
Em cima da carta usual de antissemitismo, haverá amplo recurso às
cartas de raça e de gênero (a desqualificação de Sanders enquanto homem
branco e velho…). Basta lembrarmos da brutalidade do mais recente ataque
de Hillary Clinton contra ele. Todas essas cartas serão jogadas com
base no medo do socialismo. Os críticos dos socialistas democráticos
martelam incessantemente que Trump não poderá ser derrotado a partir de
uma plataforma como a de Sanders (por ser demasiadamente esquerdista), e
que o objetivo primordial hoje é se livrar de Trump. A isso devemos
simplesmente responder que a verdadeira mensagem escondida por trás
argumento cínico é a seguinte: “se a escolha for entre Trump e Sanders, nós ‘moderados’ preferimos Trump…”
Notas
1 Ed Mazza, “Harrison Ford: America Has Lost Its Moral Leadership And Credibility”, HuffPost, 6 fev. 2020.
2 George Kennan, citado em John Pilger, The New Rulers Of the World (Londres, Verso Books 2002), p. 98.
3 John Ismay e Thomas Gibbons-Neff, “160 Nations Ban These Weapons. The U.S. Now Embraces Them”, The New York Times, 7 fev. 2020.
4 Stephen Collinson, “Republican theory for Trump acquittal could unleash unrestrained presidential power”, 30 jan. 2020, CNN.
2 George Kennan, citado em John Pilger, The New Rulers Of the World (Londres, Verso Books 2002), p. 98.
3 John Ismay e Thomas Gibbons-Neff, “160 Nations Ban These Weapons. The U.S. Now Embraces Them”, The New York Times, 7 fev. 2020.
4 Stephen Collinson, “Republican theory for Trump acquittal could unleash unrestrained presidential power”, 30 jan. 2020, CNN.
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Slavoj Žižek
nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo,
psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por
diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl
Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política
da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto
de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for
Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do
centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou
Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917) (2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum (2009), Em defesa das causas perdidas, Primeiro como tragédia, depois como farsa (ambos de 2011), Vivendo no fim dos tempos (2012), O ano em que sonhamos perigosamente (2012), Menos que nada (2013), Violência (2014), O absoluto frágil (2015) e O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política (2016). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.
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