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domingo, 16 de fevereiro de 2020

Sobre a provocação da morte antecipada – «eutanásia» e «suicídio assistido»



REFLEXÃO

A eutanásia, morte antecipada, ou morte medicamente assistida (como
eufemisticamente surge designada) volta a ser debatida na Assembleia da
República em 20 de Fevereiro na base de cinco iniciativas legislativas, as que estão
entregues até hoje, que visam despenalizar essa prática.
1 Vinte meses passados sobre a rejeição de iniciativas em tudo idênticas não houve
factos novos. Nenhum país aprovou legislação semelhante, a legalização da eutanásia
está circunscrita a uma ínfima minoria de ordens jurídicas.
2 As razões que levaram o PCP em 2018 a assumir uma posição contrária à legalização
da provocação da morte antecipada permanecem inteiramente válidas. Subsistem, porém,
incompreensões em torno dos fundamentos desta posição que se baseiam em equívocos
que importa desfazer.
O PCP não despreza as razões individuais de quem, confrontado com um sofrimento
insuportável em situação terminal, queira pôr termo à vida, nem pretende condenar
ninguém ao sofrimento.
Bem pelo contrário. Só quem não conhece o profundo humanismo dos ideais comunistas
pode pensar tal coisa. O que o PCP considera é que devem ser mobilizados todos os
esforços e todos os meios técnicos e científicos disponíveis para evitar o sofrimento
humano em todas as circunstâncias, respeitando a vontade do paciente, manifestada
designadamente através do testamento vital, evitando a má prática médica designada por
distanásia (prolongando artificialmente a vida através de obstinação terapêutica) e
promovendo a assistência adequada às circunstâncias até ao momento inevitável da
morte. Havendo a assistência médica devida, a morte é sempre assistida. Questão
diferente é ser antecipadamente provocada.
Perante os problemas do sofrimento humano, da doença, da deficiência ou da
incapacidade, a solução não é a de desresponsabilizar a sociedade promovendo a morte
antecipada das pessoas nessas circunstâncias mas sim a do progresso social no sentido
de assegurar condições para uma vida digna, mobilizando todos os meios e capacidades
sociais, a ciência, a tecnologia para debelar o sofrimento e a doença e assegurar a
inclusão social e o apoio familiar.
Para o PCP, a humanização dos cuidados assistenciais no termo da vida, e a diminuição
ou eliminação do sofrimento, constitui uma parte substantiva das incumbências dos
serviços públicos de saúde, e está contida nas próprias finalidades deontológicas da
medicina. As sérias insuficiências existentes nesse domínio, em Portugal, só podem ser
reparadas pelo reforço dos meios materiais e humanos no âmbito do Serviço Nacional de
Saúde.
3 Falta muito para se cumprir o dever do Estado de garantir uma assistência condigna às
pessoas no termo da existência, diminuir ou eliminar o sofrimento por meios médicos e de
cuidados assistenciais gerais, em condições de igualdade, sem discriminações. A
medicina tem hoje recursos eficazes para tratar a dor e diminuir ou eliminar o sofrimento.
A existência de uma rede de cuidados paliativos e a garantia de cuidados médicos
adequados para evitar o sofrimento na fase terminal da vida estão muito longe de ser uma
realidade no nosso país. Muitos cidadãos, particularmente os de menores recursos não
têm acesso a esses meios. Como pode então o mesmo Estado, que não garante
condições dignas de sobrevivência garantir condições legais para antecipar a morte?
No plano legislativo já existe hoje em Portugal um instrumento (Registo Nacional de
Testamento Vital) que permite, dentro de limites determinados, a um indivíduo de maior
idade e capaz, manifestar antecipadamente de forma autónoma a sua vontade, livre e
esclarecida, no que concerne aos cuidados de saúde que deseja receber, ou não deseja
receber, no caso de vir a encontrar-se incapaz de expressar autonomamente a sua
vontade pessoal.
Esta manifestação antecipada de vontade, renovável de cinco em cinco anos, permite à
pessoa alterar ou renovar essa sua vontade. São assim respeitados os direitos, quer do
requerente, quer do médico, e de outros profissionais de saúde, bem como admitido o
erro de prognóstico, possível apesar dos avanços das ciências biomédicas. Pelo
contrário, a rápida consumação da morte pelo procedimento da eutanásia torna qualquer
rectificação impossível.
O reconhecimento da autonomia e da vontade da pessoa do doente tem lugar no
consentimento informado, no direito de suspender terapêuticas ou de não as iniciar e na
concretização das directivas antecipadas de vontade.
4 A legalização da eutanásia é normalmente apresentada como o reconhecimento de um
direito.
O direito a dispor da própria vida incluindo o direito a decidir da própria morte. Não é
assim. O direito à vida é um direito fundamental, inalienável e irrenunciável. A morte é
uma inevitabilidade que decorre da própria vida, não é um direito fundamental. Se assim
fosse, não se justificaria o dever do Estado de proteger os cidadãos através de medidas
preventivas e proibitivas de comportamentos que ponham em perigo as suas vidas. A
autonomia individual é algo que deve ser respeitado, mas uma sociedade organizada não
é uma mera soma de autonomias individuais.
Inscrever na Lei a provocação da morte antecipada não é um sinal de progresso mas um
passo no sentido do retrocesso civilizacional, com profundas implicações sociais,
comportamentais e éticas que questionam elementos centrais de uma sociedade que se
guie por valores humanistas e solidários.
A aprovação de legislação que permita a provocação da morte antecipada, não é uma
necessidade social ou assistencial. A discussão suscitada publicamente não resulta da
reivindicação de direitos e necessidades para as pessoas gravemente doentes, no termo
da vida e com intenso sofrimento, mas tem como principal sustentáculo um movimento de
opinião com forte apoio mediático, visando consagrar o direito à morte na forma de
eutanásia como se esta fosse mais digna.
5 O recurso à eutanásia é por vezes apresentado como uma garantia de dignidade. Para
o PCP, a dignidade da vida humana não se expressa na decisão de morrer. O que está
em causa na legalização da eutanásia não é a dignidade individual da opção de cada um
sobre o destino da sua vida. É a dignidade de um Estado que pretende oferecer
condições supostamente dignas para morrer a pessoas a quem nega condições dignas
para viver.
As iniciativas legislativas apresentadas pretendem basear-se na decisão individual de
alguém que, confrontado com uma situação de sofrimento insuportável, pretenda pôr
termo à vida. Mas essa pretensão é, em todas as iniciativas, um mero pressuposto de
uma decisão que não é tomada pelo próprio, a não ser no momento inicial. A partir dele,
toda a tramitação e decisões são transferidas para um processo administrativo complexo,
onde são chamadas a intervir múltiplas entidades.
Em boa verdade, a decisão da morte antecipada de um doente terminal em sofrimento
insuportável não resulta afinal da decisão do próprio, mas de um acto administrativo que,
como tal, não pode deixar de ser recorrível.
Está-se assim perante uma contradição insanável. O regime proposto não poderia
prescindir de cautelas extremas, mas tais cautelas relegam para um plano secundário,
quando não condenam à irrelevância, o sofrimento extremo em que o pedido se baseou.
6 A legalização da eutanásia é por vezes apresentada em analogia com a da Interrupção
Voluntária da Gravidez (IVG) que o PCP foi o primeiro partido a defender. Falso
argumento. O PCP sempre considerou a despenalização da IVG como a resposta
necessária a um flagelo social e um gravíssimo problema de saúde pública. O PCP não
defendeu a legalização da IVG baseado em considerações individualistas ou como
método de planeamento familiar. O PCP considerou sempre, em primeira linha, o perigo
para a saúde e a vida das mulheres que constituía o recurso ao aborto clandestino, e
manifestou-se junto dos tribunais quando as mulheres eram sujeitas a processos crime
por interrupção da gravidez, mesmo quando outros faziam depender a despenalização
dos resultados incertos de um referendo. O PCP defendeu a despenalização da IVG em
nome da saúde e da vida. Não há nenhuma comparação com a defesa da antecipação da
morte.
Também não é justo associar a posição do PCP sobre a eutanásia a concepções
religiosas, pelo facto de as principais religiões a condenarem. As razões do PCP são
diversas. As religiões baseiam a condenação da eutanásia na origem divina da vida. O
PCP respeita quem assim pensa, mas baseia a sua posição em razões de ordem social:
no respeito pela dignidade da vida e por considerar que é o dever do Estado tudo fazer
para garantir condições dignas de existência até ao fim da vida.
Ao contrário do que se pretende fazer crer, não há nenhuma tendência internacional no
sentido da legalização da eutanásia. Os países que adoptaram legislação nesse sentido
continuam a ser casos isolados (apenas quatro em toda a Europa), e os efeitos dessa
legislação têm vindo a causar sérias apreensões, tendo em conta que o número de
«mortes assistidas» cresceu muito para além do que era suposto e previsível.
A Holanda é o país que mais a pratica, sendo uma percentagem significativa das causas
de morte (cerca de 4,0%). A legalização da eutanásia levou a frequentes abusos e
práticas para lá das disposições da lei cujo cumprimento se tem revelado difícil controlar.
Na Suíça, está instituída uma verdadeira indústria do suicídio assistido. Aí prolifera um
«turismo da morte», baseado em empresas que oferecem os seus serviços recorrendo a
um marketing agressivo destinado a aliciar potenciais clientes. Basta aceder aos sites
dessas organizações para verificar o «interesse» com que acompanham a possibilidade
de despenalização da eutanásia em Portugal.
A realidade dos países que legalizaram a eutanásia não é exemplo que deva ser seguido
em Portugal. Não se trata de processo de intenções nem de aplicação da teoria da
«rampa deslizante». É a simples observação de uma realidade que não queremos no
nosso país.
7 Os projectos apresentados são idênticos nos procedimentos, com pequenas variantes.
Provocar antecipadamente a morte a pedido do doente, administrando uma injecção ou
facultando um comprimido de um veneno letal, não corresponde ao significado real da
expressão «antecipação da morte» ou da expressão «morte medicamente assistida».
Essas formas de dizer revelam a ocultação ao grande público do que se trata de facto:
provocar a morte antecipada directamente, a pedido do doente. A morte provocada
deliberadamente está fora da medicina.
8 O PCP reafirma a sua oposição a legislação que institucionalize a provocação da morte
antecipada, seja qual for a forma que assuma, bem como a propostas de referendo sobre
a matéria.
Num quadro em que, com frequência, o valor da vida humana surge relativizado em
função de critérios de utilidade social, de interesses económicos, de responsabilidades e
encargos familiares ou de gastos públicos, a legalização da provocação da morte
antecipada acrescentaria novos problemas.
Desde logo, contribuiria para a consolidação das opções políticas e sociais que conduzem
à desvalorização da vida humana e introduziria um relevante problema social resultante
da pressão do encaminhamento para a morte antecipada de todos aqueles a quem a
sociedade recusa a resposta e o apoio à sua situação de especial fragilidade ou
necessidade.
Não se pode iludir assim os riscos, em particular numa sociedade determinada pelo
capitalismo, de uma deriva economicista como forma de aliviar os encargos com a saúde
ou a segurança social.
O PCP continuará a lutar para a concretização no plano político e legislativo de medidas
que respondam às necessidades plenas dos utentes do Serviço Nacional de Saúde,
nomeadamente no reforço de investimento sério nos cuidados paliativos, incluindo
domiciliários; na garantia do direito de cada um à recusa de submeter-se a determinados
tratamentos; na garantia de a prática médica não prolongar artificialmente a vida; no
desenvolvimento, aperfeiçoamento e direito de acesso de todos à utilização dos recursos
que a ciência pode disponibilizar, de forma a garantir a cada um, até ao limite da vida, a
dignidade devida a cada ser humano.
É esta a concepção de vida profundamente humanista que o PCP defende e o seu
projecto político de progresso social corporiza. Uma concepção que não desiste da vida,
que luta por condições de vida dignas para todos e exige políticas que as assegurem
desde logo pelas condições materiais necessárias na vida, no trabalho e na sociedade.
13/02/2020

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