Analista indica que crímenes de Bucha fueron perpetrados por ucranianos
Un
analista internacional norteamericano indicó que los civiles de Bucha
fueron matados por ucranianos. Se trata de Scott Ritter, exinspector de
la ONU en Irak por Enzo Ferrari
La
gente de Bucha, ciudad cercana a Kiev, murió a manos de militares
ucranianos, declaró el analista militar estadounidense Scott Ritter,
exinspector de la ONU en Irak.
El
analista recordó que, según militares rusos, ellos estuvieron en Bucha
durante unas semanas y tenían buenas relaciones con la población local.
«Ellos organizaron una especie de ‘bárter’, el trueque de su ración seca
por víveres frescos. Los habitantes de Bucha les daban huevos, leche y
queso, y recibían a cambio harina, sal, azúcar y carne. Después los
rusos se fueron. Todos los que cooperaron de ese modo con ellos fueron
llamados colaboracionistas», dijo Ritter durante un seminario web.
«Lo
sabemos porque la policía nacional ucraniana publicó un anuncio en el
que decía que su grupo se dirige a Bucha el 1 de abril para efectuar la
limpieza y liquidar a los colaboracionistas», agregó.
Es
una conducta contraria a la actitud de los rusos, consistente en tratar
con respeto a los habitantes de Ucrania y procurar no hacer daño a la
población civil, recordó el analista. «Ucrania en cambio declara: si
ustedes cooperaron con los rusos, morirán. En redes sociales hay un
video en que un alto representante político dice a los habitantes de
Bucha: queden en casa, la policía nacional efectúa limpieza», continuó
Ritter. A su juicio, los integrantes de los grupos de represión
ucranianos disparaban contra la gente en la calle, tocaban a las puertas
de quienes cooperaron con los militares rusos y los mataban.
A un «Zafari» dijeron en Bucha
«Tenemos
un vídeo en que los policías ucranianos, concretamente el destacamento
Azov, anuncian con orgullo que van a un safari. El grupo especial
policial que entró en Bucha se llamaba Safari. Ellos organizaban safari
para limpiar a los colaboracionistas prorrusos. Aquí limpiar significa
matar, no capturar sino asesinar. Es lo que están haciendo. Y luego
empiezan a fotografiar cadáveres diciendo que lo hicieron los rusos»,
señaló Ritter.
El
analista también llamó la atención sobre que la mayoría de los cuerpos
que aparecen en el vídeo tienen una venda blanca en la manga, los
habitantes de Bucha las ponían para decir a los rusos: «estamos del lado
de ustedes, no nos maten». También constató que «al lado de cada cuerpo
estaba la caja verde de la ración de soldado, la que ellos llevaban en
el momento de ser baleados». «Estas personas no fueron matadas por los
rusos, sino por los ucranianos. Pero aquí (en EEUU) no promueven esta
tesis, sino que afirman lo contrario», declaró Ritter. Con información
de Sputnik.
Faina Savenkova é uma jovem de 12 anos de Lugansk. Eis uma das suas "Cartas da Frente":
Olá, bisavô Vasily!
Estamos novamente na véspera do Dia da Vitória. E eu quero pedir o
seu perdão. Perdoe-nos por falhar, esquecendo as suas façanhas e os
heróis da guerra. Nas eternas disputas perdemos o principal – a nossa
história. Afinal, você defendeu Moscovo, congelou nos pântanos da
Bielorrússia, libertou Praga. E agora dizem que foi em vão. Que a sua
vitória foi uma ocupação, que Leningrado poderia ter-se rendido, que eu
deveria ter pena dos nazistas e que a Parada da Vitória é uma psicose da
vitória. Posso fazer isso? Claro que não!
Olá, avô Miron!
Eles contaram-me como você perseguia os bandeiristas pelas florestas
da Ucrânia sem pensar em dormir ou se aquecer. Libertando e avançando
lentamente. Ver aldeias incendiadas por eles e crianças mortas. Você nos
livrou dessa escória, sem poupar sua vida. E agora os descendentes
deles dizem que foram heróis. E agora tenho de dizer: “Glória aos
heróis” e renegar você, soldado soviético. Dizem que venceram a guerra,
mas, como antes, estão lutando contra crianças e velhos, destruindo
cidades e aldeias, deixando para trás terra queimada e cinzas em suas
botas. Pode ser assim, se apenas 77 anos se passaram desde a Vitória?
Pode. Lamento não podermos destruí-los todos.
Olá, bisavó Elsa
Desculpe pela estrela amarela estar em voga novamente, só que desta
vez para os russos. Agora dizem que um russo não é um libertador, mas um
subumano. Quão familiar. Eles costumavam dizer a mesma coisa sobre você
durante os progroms em Lviv e Kiev. Quem lhes deu o direito de decidir
quem é digno de ser chamado de humano e quem não é? Nós fizemos. Pela
nossa indiferença à nossa história.
Olá, soldado russo!
Perdoe-nos por não sermos capazes de manter nosso mundo longe da
guerra. Nós nos acalmamos e pensamos que uma vida pacífica era para
sempre, e que a liberdade é concedida sem luta. Acontece que não é. O
fascismo está em nosso redor. Está mais uma vez marchando por nossa
terra, exibindo suas bandeiras e divisas de Azov, Aydar e o Setor
Direita. Está tudo em nossa volta. Já está aqui. E é por isso que você
está de novo na fila, como estava naquele terrível ano de 41. Você é um
checheno, um bashkir, um ossetiano, um abkhaz, um ucraniano, um buriato
ou um bielorrusso. Você é um soldado russo, seja você quem for! Você
veio para defender aqueles que são fracos e indefesos. Você veio para
vencer. De novo e de novo. Como uma vez nas trincheiras de Estalingrado,
agora nas estepes de Donbass. Esta guerra será tão difícil quanto foi
então. Nem todos poderão viver para esta vitória, mas o fascismo será
destruído e nunca mais levantará a cabeça. Acredito que a vitória virá.
As cidades reconstruídas da Ucrânia e Donbass celebrarão o dia 9 de
maio. Kiev, Donetsk, Luhansk, Odessa, Sloviansk, Kharkiv, Dnipropetrovsk
e outras cidades farão um desfile, onde, como há muitos anos, será
transportada a Bandeira da Vitória. E as bandeiras daquela Ucrânia
nazista serão lançadas aos monumentos dos heróis. E vamos esperar por
essa vitória.
É um semioficial website que lista todos os "inimigos da Ucrânia",
com foto e morada. Poderíamos chamá-lo de “lista de linchamento”
online. Listam pessoas que não aprovam a ideologia Banderista Ukronazi e
alguns casos realmente ridículos. Mas agora, eles atingiram um
ponto ainda baixo: listaram uma menina de 12 anos, Faina Savenkova,
uma jovem autora que escreveu para o blog The Saker e fez uma sessão de
perguntas e respostas para nós. Agora Faina está oficialmente listada
como inimiga da Ucrânia e designada para linchamento, junto com sua
família.
Quero perguntar aos meus leitores, o que pensam do silêncio
ensurdecedor dos vários defensores dos "direitos humanos" e das
organizações do ocidente "promotoras da democracia"?
Andrei
- Z -
Os media tão atentos aos apelos de jovens (quando convém às
oligarquias) como com a menina Greta, silencia tudo isto. Guterres que
foi gaguejar para Moscovo, foi para Kiev verter lágrimas (de crocodilo
talvez, bem mas ele depois vai à confissão...) que faltaram para os
crimes dos ucronazis e os milhares de mortos no Donbass e os queimados
vivos em Odessa. Tal como faltaram para todas as outras guerras do
imperialismo.
Não o "mundo livre" não suporta jovens como Faina Savenkova, pelo
contrário nem um momento deixa de apoiar os ucronazis que colocaram esta
jovem num "lista negra" para ser linchada bem como à sua família. De
facto já nada nos admira daqueles que se calam perante as injustiças e o
sofrimento de Julian Assange.
DVC
O então presidente dos EUA George H. Bush gesticula durante uma entrevista conjunta com o presidente soviético Mikhail Gorbachev 29 de outubro de 1991, na embaixada soviética em Madrid. (Foto AP/Jerome Delay)
Documentos secretos desclassificados
contam a história de como as autoridades americanas levaram os russos a
acreditar que nenhuma expansão seria empreendida pela NATO, e mais
tarde quase duplicou o tamanho da aliança.
Transcrições e resumos russos e americanos de reuniões de alto nível, postados nos últimos anos pelo Arquivo de Segurança Nacional da Universidade George Washington, registam várias garantias no início dos anos 1990.
Algumas eram explícitas, outras implícitas e passíveis de interpretação.
clicar na imagem para ver todos os documentos desclassificados
Entrevistas de Embaixadores dos EUA na Rússia
clicar na imagem para ver todas as entrevistas e documentos desclassificados
O Arquivo de Segurança Nacional[não confundir com Agência de Segurança Nacional] é
uma instituição de pesquisa e arquivamento não governamental, sem fins
lucrativos, localizada no campus da Universidade George Washington em
Washington, D.C. Fundada em 1985 para verificar o crescente sigilo do
governo.
O
Arquivo de Segurança Nacional é um centro de jornalismo de
investigação, defensor do governo aberto, um instituto de pesquisa de
assuntos internacionais e o maior repositório de documentos
desclassificados dos EUA fora do governo federal.
O
Arquivo de Segurança Nacional estimulou a desclassificação de mais de
10 milhões de páginas de documentos governamentais ao ser o principal
utilizador sem fins lucrativos da Lei de Liberdade de Informação dos EUA
(FOIA), apresentando um total de mais de 50.000 FOIA e solicitações de
desclassificação em mais de 30 anos de história.
«The National Security Archive is a 501(c)(3)non-governmental, non-profit research and archival institution located on the campus of the George Washington University in Washington, D.C. Founded in 1985 to check rising government secrecy, the National Security Archive is an investigative journalism center, open government advocate, international affairs research institute, and the largest repository of declassified U.S. documents outside the federal government.[1]
The National Security Archive has spurred the declassification of more
than 10 million pages of government documents by being the leading
non-profit user of the U.S. Freedom of Information Act (FOIA), filing a total of more than 50,000 FOIA and declassification requests in its over 30 years of history.»
Adenda em 26/04/2022 às19h45m:
Expansão da NATO: o que Yeltsin ouviu
clicar na imagem para ver todos os documentos desclassificados
Considerações sobre a Revolução dos Cravos e seus desdobramentos
“A lição dos exemplos instrui muito mais, que a dos preceitos” (Sabedoria popular portuguesa)
Em 1972, o general Antônio Spínola publicou o livro Portugal e o futuro.
O governo de Marcelo Caetano autorizou a publicação do livro. O parecer
favorável foi feito por ninguém menos que o general Costa Gomes.[i] A guerra nas colônias mergulhou Portugal em uma crise crônica.
Um país de dez milhões habitantes, acentuadamente defasado da
prosperidade europeia dos anos sessenta, sangrando pela emigração da
juventude que fugia do serviço militar e da pobreza, não podia continuar
mantendo um exército de ocupação de dezenas de milhares de homens,
indefinidamente, em uma guerra africana. O que não se sabia, então, era
que o livro de Spínola era somente a ponta de um iceberg e que,
clandestinamente, na oficialidade média, já estava se articulando o
Movimento das Forças Armadas, o MFA. A fraqueza do governo Marcelo
Caetano era tão grande que cairia como uma fruta podre, em horas. A
nação estava exaurida pela guerra. Pela porta aberta pela revolução
antiimperialista nas colônias, iria entrar a revolução política e social
na metrópole.
O serviço militar obrigatório era de assombrosos quatro anos, dos
quais pelo menos dois eram cumpridos no ultramar. Mais de dez mil
mortos, sem contar os feridos e mutilados, na escala de dezenas de
milhares. Foi do interior desse exército de alistamento obrigatório que
surgiu um dos sujeitos políticos decisivos do processo revolucionário, o
MFA. Respondendo à radicalização das classes médias da metrópole e,
também, à pressão da classe trabalhadora na qual uma parcela dessa
oficialidade média tinha sua origem de classe, cansados da guerra, e
ansiosos por liberdades, rompiam com o regime.
Estas pressões sociais explicam, também, os limites políticos do
próprio MFA, e ajudam a compreender porque, depois de derrubar Caetano,
entregaram o poder a Spínola. O próprio Otelo, defensor, a partir do 11
de Março, do projeto de transformar o MFA em movimento de libertação
nacional, à maneira de movimentos militares em países da periferia, como
no Peru do início dos anos setenta, fez o balanço com uma franqueza
desconcertante: “Este sentimento arraigado de subordinação à hierarquia,
da necessidade de um chefe que, por cima de nós, nos orientasse no
“bom” caminho, nos perseguiria até o final”.[ii]
Esta confissão permanece uma das chaves de interpretação do que ficou
conhecido como o PREC (processo revolucionário em curso), ou seja, os
doze meses em que Vasco Gonçalves esteve à frente do II, III, IV e V
governos provisórios. Ironicamente, assim como muitos capitães se
inclinavam a depositar excessiva confiança nos generais, uma parcela da
esquerda entregava aos capitães, ou à fórmula unidade do povo com o MFA,
defendida pelo PCP, a liderança do processo.
Diz-se que, em situações revolucionárias, os seres humanos excedem-se
ou se elevam, entregando-se na melhor medida de si próprios. Aparece,
então, o que têm de melhor e pior. Spínola, enérgico e perspicaz, era um
reacionário pomposo, com poses de general germanófilo, com seu incrível
monóculo do século XIX. Costa Gomes, sutil e astuto, era, como um
camaleão, um homem da oportunidade. Do MFA surgiram as lideranças de
Salgueiro Maia ou Dinis de Almeida, valentes e honrados, mas sem
educação política; de Otelo, o chefe do COPCON, uma personalidade entre
um Chávez e um Capitão Lamarca, ou seja, entre o heroísmo da organização
do levante, e o disparatado das posteriores relações com a Líbia e as
FP-25 de abril; de Vasco Lourenço, de origem social popular, como Otelo,
atrevido e arrogante, mas tortuoso; de Melo Antunes, instruído e
sinuoso, o homem chave do grupo dos nove, o feiticeiro que termina
prisioneiro de suas manipulações; de Varela Gomes, o homem da esquerda
militar, discreto e digno; de Vasco Gonçalves, menos trágico que
Allende, mas, também, menos bufão que Daniel Ortega. Foi da tropa,
também, que surgiu o “Bonaparte”, Ramalho Eanes, sinistro, que enterrou o
MFA.
A revolução democrática
A economia portuguesa, pouco internacionalizada, mas já razoavelmente
industrializada, se estruturava na divisão internacional do trabalho em
dois “nichos”, os dois pilares empresariais do regime, a exploração
colonial e a atividade exportadora. Sete grandes grupos controlavam
quase tudo. Ramificavam-se em 300 empresas que tinham 80% dos serviços
bancários, 50% dos seguros, 8 das 10 maiores indústrias, 5 das 7 maiores
exportadoras. Os monopólios comandavam, mas a dinâmica de crescimento
era oscilante. O país permaneceu, comparativamente, estagnado, enquanto a
economia européia vivia o boom do pós-guerra. Em Portugal, não houve
alívio social. A superexploração do trabalho manual se manteve, agravada
pelas sequelas sociais da guerra colonial. A ordem salazarista se
manteve depois da morte do ditador, com um implacável braço armado – a
PIDE – 20.000 informantes, mais de dois mil agentes.
Não há, é certo, um sismógrafo de situações revolucionárias. Ainda na
manhã dia 25 de Abril, ao ouvir pelo rádio a comunicação do levante
militar do MFA, uma multidão de milhares de pessoas saiu ás ruas e se
dirigiu à baixa de Lisboa, cercando o Quartel da GNR (Guarda Nacional
Republicana) no Largo do Carmo, onde Marcelo Caetano se refugiara, e
negociava com Salgueiro Maia os termos da rendição, exigindo a presença
de Spínola. Algumas centenas de pides – Polícia Internacional de Defesa
do Estado – entrincheirados na sede, disparam sobre a massa popular. No
Porto, milhares de pessoas cercaram os policiais no edifício da Câmara, e
estes responderam atirando sobre a população. E foi só isso a força da
resistência. Deixaram quatro mortos.
Toda revolução tem o seu pitoresco. Nunca saberemos ao certo da veracidade maior ou menor dos pequenos episódios. Ma si non é vero, é bene trovato.
Nas primeiras horas da manhã, quando uma coluna de carros militares
descia a Avenida da Liberdade em direção ao Terreiro do Paço, as
floristas do Parque Mayer lhes perguntam o que estava acontecendo, e os
soldados respondem que vieram derrubar a ditadura. Elas, na sua
simplicidade, de tão felizes, lhes oferecem cravos vermelhos e assim,
sem o saber, batizaram a revolução com o nome de uma flor.
Recordemos que uma revolução não deve se confundir com o triunfo de
um levante militar, mesmo quando se trata de uma insurreição com apoio
popular. Não é incomum que golpes militares ou rebeliões de
quartel funcionem, historicamente, como um sinal de que uma tormenta
muito maior se aproxima. As operações palacianas podem “abrir uma
janela” por onde irá entrar o vento da revolução que estava contido. Em
Portugal, o processo da revolução política transbordou, como na Rússia
de 1917, porque o exército tinha sido dilacerado pela guerra.
Quando no primeiro de Maio de 1974 centenas de milhares de pessoas
desfilaram durante horas até o estádio de Alvalade, carregando milhares
de bandeiras vermelhas para recepcionar os que voltavam do exílio, e
abraçar os que saíram das prisões, estavam marchando em direção aos seus
sonhos de uma sociedade mais justa. Descobriam, surpresas, a força
social de sua mobilização. É dessa experiência prática compartilhada por
milhões que são feitas as revoluções sociais.
A última revolução
A revolução portuguesa foi a última revolução social na Europa
Ocidental do final do século XX. Ainda que interrompida, a dinâmica de
revolução social anticapitalista foi um dos seus traços chave. O
conteúdo social do processo que veio no ano e meio que sucedeu o 25 de
abril foi determinado em um contexto complexo: a revolução tinha tarefas
pendentes – fim da guerra colonial, independência das colônias, reforma
agrária, trabalho para todos, elevação dos salários, acesso à moradia,
direito ao ensino público – que não se resumiam à derrubada da ditadura.
A queda do regime foi o ato inaugural de uma etapa política de
radicalização popular incomparavelmente mais profunda – uma situação
revolucionária – em que foram sendo construídas as experiências de
auto-organização. No 1º. de maio, uma semana depois da queda de Caetano,
uma manifestação gigantesca em Lisboa, demonstra que uma irrupção de
massas já começou. Comemora-se a libertação dos presos políticos, soltos
em Caxias e Peniche, assim como no famigerado Tarrafal, em Cabo Verde.
Álvaro Cunhal e Mário Soares chegam do exílio e, pela primeira vez,
discursam. Soares faz exigência pública ao MFA e a Spínola, indicado
presidente, defendendo que o PS e o PCP, nas suas palavras, os dois
partidos mais representativos da classe operária, deveriam ser o núcleo
do governo.
Já no 28 de abril, os moradores de barracas da Boavista em Lisboa
ocuparam casas vazias de um bairro social – construções feitas pelo
Estado – e se recusaram a sair, mesmo quando cercados pela polícia e por
tropas, sob o comando do MFA, realizando a primeira ocupação. No dia 30
de abril, a primeira assembléia universitária de Lisboa reúne mais de
10.000 estudantes no Técnico, a faculdade de engenharia. No dia 2 de
Maio é autorizado o regresso de todos os exilados. Desertores e
refratários do Exército são anistiados. No dia 3 de Maio generaliza-se
uma onda de ocupações de casas desocupadas na periferia de Lisboa, com
forte iniciativa de militantes de várias organizações de
extrema-esquerda. O embarque de uma unidade militar para África é
impedido.
Em 5 de Maio, trabalhadores dos TLP (telefônicos), Caixa de
previdência de Faro, Hospital do Porto, reúnem-se para exigir a demissão
das chefias. Em Évora, os trabalhadores transformam as Casas do Povo em
sindicatos agrícolas. Uma vaga de greves começa, encabeçada pelas
grandes concentrações operárias, como na Lisnave e na Siderúrgica
Nacional, exigindo a reintegração dos demitidos, desde o início do ano, e
salários. Trabalhadores do Diário de Notícias, o principal matutino,
ocupam o Jornal, e impedem a entrada dos administradores, que são depois
demitidos. Meia dúzia de exemplos que são apenas uma ilustração de que
ainda antes de completar um mês do fim da ditadura, a revolução invadia
todas as esferas da vida social e ocupava, além das ruas, as empresas,
escolas, universidades, hospitais, oficinas, sindicatos, jornais,
rádios, e até as casas.
Podemos periodizar o processo em três conjunturas: (a) de abril de
1974 até o 11 de março de 1975, abre-se uma situação revolucionária
semelhante à do Fevereiro russo[iii]:
uma ampla frente social que une pequenas frações dissidentes da
burguesia, exasperada com a inércia da ditadura, com a ampla maioria das
classes médias urbanas, cansadas com o arcaísmo e obtusidade do regime,
e as massas trabalhadoras, desesperadas pela guerra e pela pobreza.
Nesses meses se garantiram as amplíssimas liberdades democráticas,
inclusive nos locais de trabalho e o cessar-fogo em África, derrotando
duas tentativas de quarteladas e o projeto de consolidação de um regime
presidencialista forte. Predomina um forte sentimento de unidade entre
os trabalhadores e a maioria dos setores médios, um apoio esmagador ao
MFA, um sentimento a favor da unidade do PS e do PCP e contra Spínola. A
sociedade gira vertiginosamente à esquerda;
(b) entre o 11 de Março e Julho de 1975, uma situação revolucionária
semelhante à que precedeu o Outubro russo: os de cima já não podem e os
debaixo já não querem mais ser governados como antes. A fuga do país de
uma parte considerável da burguesia, a nacionalização de parte das
grandes empresas, o reconhecimento das independências – menos Angola – e
a generalização de um processo de auto-organização de massas nos locais
de trabalho, estudo e, sobretudo, nas Forças Armadas, mas sem que a
dualidade de poder encontrasse uma via de centralização;
(c) finalmente, a crise revolucionária, entre julho e novembro de
1975, com a cisão do MFA, a independência de Angola, a radicalização
anticapitalista com rupturas de setores de massas da influência do PS e
do PCP, a formação dos SUV (auto-organização de soldados e marinheiros) e
manifestações armadas, ou seja, a ante-sala ou de um deslocamento
revolucionário do Estado, ou um golpe contra-revolucionário. Um destes
dois desenlaces se tornava inadiável.[iv]
A contra-revolução
A primeira tentativa de golpe fracassa estrepitosamente em 28 de
setembro, na forma de um chamado público de Spínola à “maioria
silenciosa”, recurso retórico de um apelo à contra-ofensiva dos grotões
mais reacionários de um Portugal rural profundo. No dia 26 de
Setembro, Spínola compareceu a uma tourada no Campo Pequeno e foi
ovacionado por uma parte do público, mas confrontos ocorreram entre
militantes de esquerda e direitistas. Lisboa acordou coberta de cartazes
convocando a passeata. No dia seguinte, ativistas do PCP e das variadas
organizações da esquerda mais radical levantaram barricadas para
impedir a passagem dos manifestantes de direita que, se esperava, viriam
de fora. Soldados se uniram, espontaneamente, às barricadas.
As sedes do Bandarra, do Partido Liberal e do Partido do
Progresso foram invadidas – propaganda fascista encontrada – e
saqueadas. No dia 28 de setembro, as barricadas ganharam mais
participação, e carros foram parados e revistados, prendendo-se os
ocupantes quando traziam armas. Otelo afirmou ter estado detido no
Palácio de Belém por ordem de Spínola. Não houve adesão de massas ao
chamado de Spínola. Cento e cinquenta conspiradores foram presos durante
o dia.
Obrigado a renunciar, mas ileso, Spínola entregou a presidência ao general Costa Gomes. Assume, então, o III Governo provisório, permanecendo Vasco Gonçalves como primeiro-ministro. As
energias do projeto de neocolonialismo à “inglesa’ não tinham, todavia,
se esgotado. Tentarão o putsch “korniloviano” de novo no 11 de março.
Mais uma vez, as barricadas levaram muitos milhares às ruas. O
segundo golpe foi a última e desesperada tentativa da fração burguesa
que se opunha à independência imediata das colônias e contou com a
participação da GNR (Guarda Nacional republicana). O RAL-1 (Regimento de
Artilharia Ligeira) de Lisboa foi bombardeado e cercado por unidades de
pára-quedistas, mas o golpe é desbaratado. Um episódio de negociação
acontece, publicamente, diante das câmaras de televisão da RTP (!!!) e
sintetiza toda a turbulência de uma quartelada improvisada e sem base
sociais significativas.
Desde o 25 de abril, esta foi a terceira vez em que militares se
enfrentaram. A primeira foi a crise que opôs a Coordenadora do MFA e
Spínola, em busca de reforço da autoridade presidencial, e levou à queda
de Palma Carlos e do I governo provisório. A segunda foi o no 28 de
setembro quando Spínola ordenou a ocupação das estações de rádio. Nas
duas primeiras nenhum tiro foi disparado. No 11 de março, o principal
quartel de Lisboa foi bombardeado e cercado, e um soldado morre. Ninguém
tem mais ilusões que grandes enfrentamentos estão no horizonte. A
memória recente do golpe de Pinochet no Chile exerce uma forte pressão
sobre a esquerda e sobre a oficialidade do MFA. Seguem-se dezenas de
prisões, articuladas pelo COPCON: os comandantes operacionais da força
que atacou o RAL-1, e várias lideranças burguesas tradicionais: vários
Espírito Santo, um Champalimaud, e um Ribeiro da Cunha
Spínola e outros oficiais comprometidos fogem para Espanha, onde
Franco os recebe, e depois, muitos foram se refugiar no Brasil. Na
seqüência, os trabalhadores bancários entram em greve política, e
assumem o controle do sistema financeiro. O MFA cria o Conselho da
Revolução, e decreta a nacionalização dos sete grupos bancários
portugueses mais importantes. Muitas empresas são ocupadas pelos
trabalhadores. A burguesia entra em pânico e começa a abandonar o país.
Mansões desabitadas são ocupadas, e nelas serão instaladas creches.
A revolução à deriva
O IV governo provisório se instala em 26 de março. A África
estava perdida. A burguesia passou a temer o pior, também, na metrópole.
Reorientou-se, apressadamente, para o projeto europeu. A reconstrução
da autoridade do Estado, a começar pelas Forças Armadas, ainda
permanecia a prioridade. O mais complexo, contudo, continuava sem
solução: tinha que improvisar uma representação política, atrair a
maioria das classes médias, e derrotar os trabalhadores.
Não tendo mais Spínola como carta na manga – e debilitados o PPD e CDS pela ligação com Spínola – não tinha instrumentos diretos – a não ser parte da imprensa e o peso sobre a alta hierarquia das FFAA –
e precisava recorrer à pressão da burguesia europeia, e dos EUA, sobre a
socialdemocracia e sobre a URSS, para que enquadrassem o PS e,
sobretudo, o PCP.
Depois do 11 de março veio a segunda primavera das utopias. Lisboa
era a capital mais livre do mundo. A grande massa do povo urbano, tanto
em Lisboa – incluído o grande cinturão metropolitano que a rodeia – e no
Porto como na maioria das cidades médias do centro e sul o país, os
trabalhadores e a juventude, mas também as novas classes médias
assalariadas no comércio e nos serviços exigiam a independência das
colônias, o retorno dos soldados, as liberdades nas empresas, salários,
trabalho, terra, educação, saúde, previdência. A experiência histórica
colocava em movimento milhões de pessoas, até então, politicamente,
inativas. Aprendiam quase instintivamente, no calor da luta, que eram a
maioria e podiam vencer. Ainda existia, também, um outro Portugal,
idoso, rural, atrasado, desconfiado da revolução, manipulado pela
Igreja, e com base social nos minifúndios do norte.
Mas eram muito minoritários. Nas cidades, sobretudo as
industrializadas, o povo simpatizava com as nacionalizações. Concordava
que sem limitações ao direito de propriedade – isto é, expropriações dos
que tinham sustentado a ditadura – não poderiam conquistar as suas
reivindicações. Começa a etapa do que foi denunciado pela ultradireita
como “assembleísmo”, ou seja, a dualidade de poderes. As hierarquias
seculares de autoridade política e social que se apoiavam em tradições
culturais de medo e respeito desabaram. As massas invadiram os espaços
sociais de suas vidas e estavam atrevidas. Queriam participar. Queriam
decidir.
Em vagas de lutas sucessivas, surgiram comissões de trabalhadores em
todas as grandes e médias empresas, como a CUF (Companhia União Fabril) –
só ela, 186 fábricas – a maioria concentrada no Barreiro, cidade
industrial do outro lado do Tejo. Champalimaud, um dos líderes mais
influentes da burguesia reage declarando “os operários são atualmente
demasiado livres”.[v]
O muralismo político – painéis à mexicana, grafites à americana,
dazibaos à chinesa, e simples pichações – fazia das ruas de Lisboa uma
expressão estético-cultural desse “universo diverso’ da revolução. Havia
de tudo, do mais solene ao mais irreverente. À porta do cemitério o
impagável “Abaixo os mortos, a terra para quem nela trabalha”. Nas
grandes avenidas, o dramático, “Nem mais um só soldado para as
colônias”. Na região das avenidas novas, “Os ricos que paguem a crise”,
assinado pela UDP e, ao lado, “A UDP que pague a crise”, assinado “Os
ricos”. Nas paredes da entrada da Faculdade de Letras, onde os
trotskistas eram mais influentes, o cético: “Os índios também eram
vermelhos e se foderam”.
A Igreja não escapou à fúria do processo revolucionário. Em Lisboa as
Igrejas ficaram desertas de jovens. Associada durante décadas ao
salazarismo – quando o Cardeal Cerejeira foi o braço direito do regime –
estava desmoralizada no Sul do País, e desautorizada diante de amplos
setores sociais. As ocupações se estendiam aos meios de comunicação. No
dia 27 de maio os trabalhadores da Rádio Renascença ocupam os estúdios e
o centro transmissor. É abandonada a designação de “Emissora Católica”.
A emissora passa a transmitir uma programação de apoio ás lutas dos
trabalhadores.
Os operários da Lisnave, então um dos grandes estaleiros do mundo,
deram o exemplo organizando piquetes para ocupar o seu sindicato. Na
Amadora, a Sorefame, uma das maiores indústrias metalúrgicas do país
entra em greve, assim como a Toyota, a Firestone, a Renault, a Carris
(motoristas de ônibus), a TAP e a CP (ferroviários), mas também pelo
interior, como entre os têxteis da Covilhã, ou nas minas da Panasqueira.
A onda de auto-organização – formação nas empresas de comissões de
trabalhadores – que aprofunda a dinâmica revolucionária da situação,
produz reações: “Os sindicalistas do PCP queixam-se amargurados: ‘Os
grevistas fazem tábua rasa das formas tradicionais de luta, nem tentam
negociar e por vezes decidem parar mesmo antes de redigirem o caderno
reivindicativo. Em muitos casos, os trabalhadores não se limitam a
exigir mais dinheiro, passam à ação direta, tentam tomar o poder de
decisão e instituir a cogestão sem estarem preparados para isso”.
(Canais Rocha ao Diário de Lisboa, em 24/6/74). [vi]
Ainda quando PCP apostava toda a sua imensa autoridade para freiar as
greves, as invasões de latifúndios no Alentejo se generalizavam, ao
mesmo tempo em que as ocupações de casas desabitadas em Lisboa e Porto
se alastravam; saneamentos – o eufemismo para expulsão dos fascistas –
realizavam depurações na maior parte das empresas, a começar pelo
serviço público, e a pressão estudantil nas Universidades impunha
assembleias deliberativas. Toda a antiga ordem parecia desabar: “A
criação do salário-mínimo nacional abrange mais de 50% dos assalariados
não agrícolas. São os trabalhadores menos qualificados, as mulheres, os
mais oprimidos, que constituem a vanguarda da conquista do poder de
compra e dos direitos sociais. O poder de compra dos assalariados
aumenta 25,4% em 1974 e 75; os salários que, em 1974, já são 48% do
rendimento nacional, passam a 56,9% em 1975. A estrutura da propriedade
modifica-se: 117 empresas são nacionalizadas, 219 outras têm mais de 50%
de participação do Estado, 206 são intervencionadas, abrangendo 55.000
operários; 700 empresas entram em auto-gestão, com 30.000 operário”.[vii]
Cada revolução tem o seu vocabulário. Como o pêndulo da política se
inclinou para a extrema esquerda, o discurso da direita girou para o
centro, e o do centro para a esquerda. O travestismo político – o
descompasso entre as palavras e os atos – faz o discurso dos partidos
irreconhecível. Mas, em Portugal, as forças burguesas superaram o
inimaginável. Desde o PPD de Sá Carneiro, hoje o PSD de Durão Barroso,
até o PPM (Partido Popular Monárquico), todos reivindicavam alguma forma
de socialismo, o que explica a linguagem socializante da Constituição
que até hoje produz espanto.
A situação aberta pela queda de Spínola trazia maiores desafios, e
mais perigosos. A burguesia exigia ordem e, sobretudo, respeito à
propriedade privada. Diante das pressões, o PS e o PCP, as forças
políticas de longe majoritárias, e as únicas com autoridade na direção
dos Governos Provisórios – além do MFA – dividiram-se e provocaram uma
cisão irremediável entre os trabalhadores. Um ano depois do 25 de abril,
as eleições para a Constituinte surpreenderam. O PS foi o grande
vencedor com espetaculares 37,87%. O PCP decepcionou com somente 12,53%.
Revelou-se um abismo entre sua força de mobilização social e a
eleitoral.
O PPD (Partido Popular Democrático) de Sá Carneiro, um líder liberal
dentro das estruturas do regime salazarista, fica em segundo lugar com
26,38%. O CDS (na extrema-direita, dirigido por Freitas do Amaral) o MDP
(Movimento Democrático Português), uma colateral do PCP que vinha do
tempo das eleições sob Caetano, e a UDP (União Democrático Popular),
maoístas de inspiração “albanesa”, conseguiram, também, representação
parlamentar.
A revolução derrotada
A presença de um partido comunista em governos europeus foi um tabu
dos anos de guerra fria. Foi uma surpresa mundial quando Cunhal foi
apresentado como ministro sem pasta no primeiro governo provisório
liderado por Palma Carlos e Spínola. A estupefação foi ainda maior
quando o PCP não somente permaneceu nos governos provisórios seguintes,
como aumentou significativamente sua influência até a queda de Vasco
Gonçalves em agosto de 1975.
A repercussão do papel do PCP continuou crescendo porque, a partir do
V governo provisório, no verão quente de 1975, Cunhal foi acusado pelo
Partido Socialista, dirigido por Mário Soares, de estar tramando um
“golpe de Praga”, ou seja, uma insurreição para tomar o poder. Soares
desafiou a hegemonia da mobilização de ruas que, até então, o PCP
detinha, levando centenas de milhares às ruas contra Vasco Gonçalves e,
apoiado pela hierarquia da Igreja, pela embaixada americana, e pelos
governos europeus, estimulando a divisão do MFA que se expressou através
do “grupo dos nove”.
Meses depois, quando o movimento militar dirigido por Ramalho Eanes,
na madrugada de 25 de novembro de 1975, de fato, tomou pela força o
poder – fazendo aquilo que denunciava que o PCP estaria preparando –
Melo Antunes defendeu, inusitadamente, a participação do PCP na
“estabilização democrática”, sublinhando, dramaticamente, que a
democracia portuguesa seria impensável sem o PCP na legalidade, para
deixar claro que o golpe não seria uma pinochetada, e que foi feito para
evitar aquilo que, no calor daqueles dias, se interpretava como o
perigo de uma guerra civil, e não para provocá-la. Admitiu, portanto,
que o VI governo provisório e o Conselho da revolução estavam fazendo
uma intervenção armada nos quartéis (um clássico autogolpe), mas alegou
que era em legítima defesa, para manter a legalidade, não para
subvertê-la.
A contra-revolução ensaiou o golpe bonapartista duas vezes com a
direção de Spínola e fracassou. Recorreu, depois, a outros dirigentes e a
outros métodos. Uma combinação de espada e concessões. Usou a espada,
cuidadosa e seletivamente, no 25 de novembro. Usou os métodos da reação
democrática com as eleições presidenciais de 1976, a negociação dos
empréstimos de emergência que os Estados da NATO liberaram, e recorreu
até à formação de um governo em vôo solo do Partido Socialista liderado
por Mário Soares.
Depois de novembro de 1975, com a destruição da dualidade de poderes
nas Forças Armadas o processo assumiu uma dinâmica lenta, contudo,
irreversível, de estabilização de um regime democrático liberal. A
derrota da revolução portuguesa não exigiu derramamento de sangue, mas
consumiu muitos bilhões de marcos alemães e de francos franceses. A
integração posterior na Comunidade Econômica com o acesso aos fundos
estruturais, gigantescas transferências de capitais para modernizar a
infraestrutura, e construir um pacto social capaz de absorver as tensões
sociais pós-salazaristas, permitiu a estabilização do capitalismo e do
regime democrático nos anos 1980 e 1990.
*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de O encontro da revolução com a história (Xamã).
Notas
[i] Marcelo Caetano, Depoimento. Rio de Janeiro, Record, 1974, p.194.
[ii] CARVALHO, Otelo Saraiva. Memórias de Abril, Los preparativos y el estallido de la revolución portuguesa vistos por su principal protagonista, Barcelona, Iniciativas Editoriales El Viejo Topo, s/data, p.163.
[iii]
A discussão dos tempos da revolução e dos critérios para aferição das
relações sociais de força pode ser encontrada no meu livro As Esquinas Perigosas da História, São Paulo, Xamã, 2004.
[iv] Lincoln Secco, A Revolução dos Cravos, São Paulo, Alameda, 2004, p.153.
[v]
Champalimaud em declaração ao matutino Diário de Notícias, Lisboa,
25/6/74, citado em Francisco Louçã, 25 de abril, dez anos de lições,
Ensaio para uma revolução, Lisboa, Cadernos Marxistas, 1984, p.36.
Os tempos estão muito difíceis. O PCP já atravessou e venceu tempos não menos difíceis. Mas os tempos nunca são iguais. A História não se repete da mesma forma.
O PCP deve aumentar e melhorar, numa espécie de contraofensiva, a sua imagem, a sua mensagem, a explicação e difusão do seu programa político de Democracia Avançada.
Explicar o que é o imperialismo, melhor, com mais clareza, com mais factos e documentos dos próprios imperialistas (como fazia nos seus livros magistrais o grande filósofo italiano Domenico Losurdo). Para o grande público. Para um público mais informado explicar e intervir, dando voz aos melhores analistas e investigadores, no debate sobre o(s) imperialismo(s). Enquadrar a guerra dos EUA, da Nato e do imperialismo contra a Rússia e a China. A geopolítica da guerra. Insistir sem cansaço que não apoiamos, que condenamos à luz do direito internacional, a invasão da Ucrânia. Invasão é o nome. Não podemos diferenciar "guerras preventivas".
Explicar que nunca pretendeu uma ditadura para Portugal no 25 de Abril, mostrando o programa que tinha então: instalar a Democracia, encerrar a guerra com a independência imediata das ex-colónias e eliminar os monopólios na economia portuguesa.
Explicar que não quer uma revolução socialista com modelo em outras passadas e extintas. Mostrar o seu programa de uma "Democracia Avançada nos Valores de Abril", que inclui eleições, partidos, liberdades individuais, participação dos próprios produtores na produção, em um mercado regulado, numa economia mista. O seu aprofundamento depende do que agora não se pode adivinhar.
Mostrar, enquanto dure a guerra na Ucrânia, que é uma infâmia apregoar-se que é a favor do regime político de Putin.
Mostrar que a OTAN (NATO) é o maior inimigo da humanidade. Denunciar o papel subserviente, com consequências muito perigosas, dos chefes políticos da UE.
Defender soluções progressistas, ecológicas e anti-imperialistas para os grandes problemas do mundo atual.
Explicar porque denuncia a NATO e o imperialismo norte-americano pelas sanções que este aplica a nações com regimes com os quais o PCP não tem que ver, regimes que não quer para Portugal. Demarcar-se da ditadura dinástica da República Popular da Coreia, que o PCP não aprecia de todo, e, ao mesmo tempo, denunciar as provocações do imperialismo que envolvem uma estratégia de intervenção belicosa em todo o Pacífico, é uma posição que concilia perfeitamente os dois termos. Denunciar as guerras e as "revoluções coloridas" que o imperialismo (sempre sobretudo norte-americano, francês e britânico) quer continuar a fomentar nos países que se querem libertar do dólar, das multinacionais dominadoras norte-americanas, das classes trabalhadoras que se devem libertar da cultura mercantil e ideológica oriunda desse ocidente etnocêntrico, e libertar-se das tutelas neocoloniais. Denunciar, combater, apoiar no que for e deve ser necessário. Nunca ser confundido com regimes políticos já extintos.
A par disto, evidentemente, realizar a unidade dos trabalhadores e ajudar a que eles se tornem, pelas lutas, independentes da ideologia dominante capitalista e burguesa, ideologia difundida nas crianças e nos adultos, desde a família à escola, desde a Universidade à fábrica. A par disto, combater dentro dele todas as tendências quer esquerdistas, quer revisionistas de direita. Abrir-se mais ainda ao novo, ao moderno, ao atual, às condições concretas. Ser firme com os adversários conjunturais, mas nunca partindo as pontes. Ser duro com os inimigos, sem contemplações nem tibiezas. Esolherem-se os porta-vozes do Partido dos trabalhadores manuais e intelectuais, os seus membros mais capazes de lidar com as televisões, que incutam simpatias e não antipatias, e, nisso, aprender com o popular Jerónimo de Sousa.
25 de Abril de 2022
P. S. Escrevo estas linhas nunca na posição de "conselheiro" (porque há problemas que se discutem nos detalhes internamente) , mas indignado e preocupado com uma opinião pública maioritária (75%) que mostra desprezar as atitudes do PCP.
Relativamente ao conflito militar na Ucrânia, eis uns quantos
pontos pelos quais, em minha opinião, se deve começar, ou pelo menos se
deve considerar atentamente numa qualquer tentativa de debate informado.
Em primeiro lugar: começou o conflito no passado mês
de Fevereiro, sendo a Rússia a agressora? Resposta: obviamente, não. O
conflito armado vem pelo menos desde 2014, quando, na sequência do golpe
da praça Maidan, as regiões ucranianas predominantemente russófonas se
manifestaram massivamente em protesto, não raro reclamando mesmo a
secessão, e pediram a ajuda russa. Todavia, só nas chamadas Repúblicas
Populares de Lugansk e Donetsk o protesto adquiriu dimensão produtora de
revolta armada e secessão efetiva. A repressão pelo governo de Kiev
destas repúblicas secessionistas provocou, desde então, perto de 15 mil
mortos. A Rússia, a França e Alemanha supostamente operaram como
mediadoras, apadrinhando os “acordos de Minsk”, que todavia a Ucrânia
nunca cumpriu. Os mortos referidos correspondem, na sua imensa maioria, a
civis das repúblicas de Lugansk e Donetsk.
Segundo aspeto: o governo de Kiev preparava-se para
levar a cabo um assalto em força contra as duas repúblicas, tendo
concentrado no Leste do território ucraniano, segundo alguns
comentadores (como Scott Ritter, nomeadamente), cerca de 60 mil homens
armados, ou mesmo mais. A “Operação Z”, como os russos lhe chamaram,
constituiu assim, antes de mais, um movimento de antecipação, que
impediu este assalto mortal preparado pelo governo de Kiev.
Terceiro, mas pode a Rússia apoiar abertamente as
pretensões secessionistas das duas referidas repúblicas? Sim, pode; e
tem, quanto a isso, indiscutivelmente razão em matéria de direito
internacional, pelo menos desde as deliberações do Tribunal
Internacional de Justiça que em 2010 formalmente indeferiram a queixa da
Sérvia relativa à proclamação da independência pelo Kosovo (aqui: en.wikipedia.org/wiki/Advisory_opinion_on_Kosovo%27s_declaration_of_independence).
Recordemos, quanto a este assunto, o seguinte. Aquando do
desmembramento da ex-Jugoslávia, a Croácia e a Bósnia, por exemplo,
fizeram secessão legalmente, porque a própria Constituição jugoslava
reconhecia esse direito às repúblicas que a compunham. Todavia, depois a
Krajina fez também secessão da Croácia, e a Srpska da Bósnia. A
resposta generalizada foi então: estas secessões são diferentes e são
ilegítimas, porque se trata aqui apenas de regiões, ao passo que a
Bósnia e a Croácia eram repúblicas. O problema, nesse caso, é que também
o Kosovo era só uma região. E todavia, depois de a NATO ter (com os
bombardeamento de Março-Junho de 1999) imposto à Jugoslávia a saída
daquele território, o Kosovo veio a proclamar a sua independência em
2008: reconhecida pela maior parte dos membros da NATO, tal como
Portugal, por exemplo, embora significativamente não pela Espanha. A
Jugoslávia restante decompôs-se entretanto em Sérvia e Montenegro. A
Sérvia, república à qual o Kosovo pertencia, levou o problema até às
mais altas instâncias jurídicas, designadamente o referido Tribunal
Internacional de Justiça. E este deu a resposta mencionada acima. A
secessão do Kosovo seria ilegal do ponto de vista interno da Sérvia, sem
dúvida; mas em matéria de direito internacional, opinaram os doutos
juristas, dever-se-ia permanecer agnóstico, porque se de um lado estava a
pretensão da integridade territorial da Sérvia, do outro estava o
propósito de autodeterminação dos kosovares – mesmo sem no Kosovo ter
sido feito qualquer referendo sobre a independência, note-se bem. Assim,
o Tribunal decidiu-se pelo referido parecer ‘agnóstico’, reconhecendo
aliás, do mesmo passo, o caráter predominante político (por oposição a
jurídico) da questão.
Quarto, pode dizer-se que, depois deste acórdão do TIJ,
as portas ficaram na verdade abertas para praticamente tudo? Que
internacionalmente passa a valer tudo, desde que se tenha a força
(política, e antes de mais militar) suficiente para fazer prevalecer um
qualquer ponto de vista? Bom, se calhar pode mesmo. Aliás, a mencionada
sentença assemelha-se estranhamente a um ‘suicídio coletivo’ jurídico,
com a admissão pública de que este assunto está muito acima da cabeça
dos juízes – e isso segundo os próprios. Mas é bom que toda a gente tome
nota de que é este o mundo em que vivemos, mesmo de acordo com aqueles
que, supostamente, estão encarregados de pôr um mínimo de ordem jurídica
neste mundo… Em todo o caso, a Rússia sem dúvida registou devidamente
esse importante ponto de viragem em teoria e doutrina das relações
internacionais, os seus responsáveis máximos, incluindo Putin, tendo-o
explicitamente referido em público mais duma vez.
Quinto, para além da questão da secessão das repúblicas
do Donbass, há o problema da neutralidade da Ucrânia. E, quanto a isso,
voltamos a embater no facto iniludível da predominância da pura e
simples força. Noutros termos: podem a Rússia ou a China, por exemplo,
se Cuba concordar com isso, despejar mísseis hipersónicos seus de última
geração naquela ilha, indiferentes ao que os EUA pensem ou não pensem?
Não parece muito crível. E, de resto, na década de 1960, JFK (que Oliver
Stone fez, com alguma plausibilidade, passar por político ‘pomba’)
disse-o claramente a Khrushev. Basicamente: “ou vocês tiram os mísseis
de lá, ou tiramos nós”. E os soviéticos tiraram: em troca, acrescentemos
e precisemos, de os norte-americanos também tirarem mísseis seus da
Turquia (neste caso algum dispositivo mental de ‘simetria’ parece fazer
sentido) e de prometerem não invadir Cuba – embora tenham continuado a
estrangulá-la economicamente, claro, mas isso é outro assunto.
Regressemos à Europa. Imagine-se uma Rússia um pouco menos pacholas do
que foi até ao passado mês de Fevereiro, dizendo: “ou vocês garantem a
neutralidade da Ucrânia, e tiram os vossos mísseis dos vários países
nossos vizinhos onde eles estão, ameaçando-nos demasiado perto, ou
tiramos nós; e trataremos também de ‘neutralizar’ a Ucrânia”. É abusivo?
É belicoso? É arrogância e ferocidade russa? É violação da Carta da
Nações, designadamente da soberania da Ucrânia? Em parte talvez seja,
mas, se quisermos produzir um juízo completamente honesto acerca deste
grupo de problemas, teremos obviamente de admitir: não foi só Brejnev a
argumentar pelo caráter “limitado” da soberania dos países. E, quando o
fez, o seu defeito principal foi, talvez, o da franqueza excessiva.
Em sexto lugar, a própria violação da Carta das Nações
é, em todo o caso, muito discutível, porque a Rússia tem
indiscutivelmente do seu lado, para além do importante princípio da
“segurança coletiva” enquanto bem comum indivisível, também o princípio
da “responsabilidade de proteger”, normalmente usado (e mesmo muito
abusado) pelos norte-americanos. Em essência, quanto ao primeiro: um
qualquer país não pode, impunemente, pretender ameaçar outro. Se o
fizer, arrisca-se e fica por sua conta, colocando-se fora da alçada da
proteção da Carta da ONU, a qual visa primordialmente a defesa da paz.
Pode a NATO, portanto, pretender expandir-se indefinidamente para Leste,
fazendo perigar a segurança da Rússia, dizendo proceder assim em nome
da soberania irrestrita dos países seus membros? Da perspetiva do
princípio da “segurança coletiva”, não pode. Em definitivo, que isso
fique claro: não pode. Se o quiser fazer, arrisca-se, deixando de ficar
sob a proteção da Carta e do espírito constitutivo da própria ONU. Ora,
quanto a isso, a Rússia tem infinitamente mais razão em 2022 do que os
EUA, quando invocaram abusivamente estas ideias, por exemplo, contra o
Afeganistão em 2001 (a suposta “ameaça terrorista”) e contra o Iraque em
2003 (as famosas “armas de destruição massiva”). Nenhum destes países
ameaçava outros, menos ainda os próprios EUA. Mas a expansão indefinida
da NATO para Leste, incluindo a eventual adesão da Ucrânia (acrescida,
para cúmulo, da rescisão do protocolo através do qual esta aceitara,
aquando da dissolução da URSS, permanecer militarmente não-nuclear!),
constituiria uma ameaça mortal e direta, um clear and present danger para a Rússia, impondo a esta uma reação com caráter de urgência.
Em sétimo lugar, quanto a “responsabilidade de proteger” (responsibility to protect,
ou R2P, como é habitualmente conhecido), idem aspas. Os EUA usaram e
abusaram grosseiramente disso, por exemplo, a respeito do Kosovo. Alguém
se lembra ainda dos célebres killing fields de Slobodan
Milosevic, apressadamente fabricados em 1999 pelos media ocidentais?
Alguém recorda Carla Del Ponte, a superlativamente prostibular
procuradora do “tribunal especial”, mandando prender Milosevic
precisamente quando a Jugoslávia estava a ser bombardeada? Os killing fields
do Kosovo nunca vieram a ser encontrados, é claro (porque obviamente
nunca existiram), mas o facto é que Milosevic acabou por ser preso e vir
a morrer na prisão, sendo depois disso pronunciado inocente pelo
próprio tribunal que o mandara prender. Nada disso acarretou, note-se,
quaisquer consequências para Carla Del Ponte. Todavia, sublinhemo-lo
agora, isto não significa que o R2P seja de todo um princípio inválido,
ou que a sua invocação constitua sempre uma impostura. Foi uma impostura
no caso do Kosovo, sim, onde a ex-Jugoslávia nunca praticou as
atrocidades mentirosamente alegadas. Mas isso não quer dizer que não
haja atrocidades desse calibre e maior por esse mundo fora. Mais
recentemente tem havido, sim, e muitas, designadamente na Ucrânia
oriental. Ora, perante esta população russófona, que de resto em boa
medida se percebe mesmo como russa (a designação de “ucraniana”
constituindo, do ponto de vista daquela, um mero topónimo, tratando-se
de russos que residem numa periferia geográfica, tal como há espanhóis
que são “estremenhos” pela singela razão de viverem na “Extremadura”),
face aos sofrimentos infligidos à mesma, pode a Rússia continuar
perpetuamente indiferente? Viu-se recentemente que não – mas era mais ou
menos percetível há muito que isso acabaria, tarde ou cedo, por
acontecer.
Oitavo, isso leva a outro aspeto importante desta
história, que é o facto de Rússia ter procedido lentamente, e até muito
tarde apenas a contragosto, apenas depois de muitíssimo pressionada
pelos acontecimentos. O conflito presente pode pois, com facilidade, ser
identificado não tanto como um conflito primordialmente Rússia-Ucrânia,
mas enquanto conflito da Rússia com a NATO, ou mesmo com o Ocidente
Coletivo, que usou a Ucrânia como instrumento para ‘açular o urso’. Tem,
quanto a isso, toda a razão Diana Johnstone
(middle-east-online.com/en/us-foreign-policy-cruel-sport):
a política dos EUA face à Rússia é sobretudo um desporto, e um desporto
cruel. O conflito, repita-se e sublinha-se pois, não começou agora nem
foi iniciado pela Rússia. Esta limitou-se a defender-se, no contexto da Drang nach Osten
da NATO, ocorrida apesar das promessas mentirosas, feitas em 1990/91,
de que não haveria “nem uma polegada” de expansão da aliança para Leste.
Em nono lugar, merecem igualmente menção, quanto ao
panorama atual, a absoluta, radical exclusão dos russos do imaginário
Ocidental, a expulsão simbólica daquela nação de tudo o que possa
indicar civilidade (ou, pelo menos, a sua enfática irradiação da Grande
Irmandade dos Povos Brancos): de Tchaikovsky e Turgueniev ao atletismo e
à patinagem artística, passando pelos concursos de gatos… Apesar de já
ter sido sublinhado por vários autores, isso deve ser mencionado aqui,
como importante sintoma do estado de saúde mental do Ocidente Coletivo:
em ocasiões anteriores de conflitos, mesmo conflitos muito acirrados - e
isso desde a Guerra da Crimeia até à chamada Crise dos Mísseis dos anos
1960 - nunca um certo número de enormidades como as que hoje
presenciamos foi obviamente cometido. Já se disse, e com razão: o
próprio Hitler, no meio do combate às Hordas Orientais que pretensamente
teria sido a “Empresa Barbarossa” (Unternehmen Barbarossa), não chegou a proibir a música russa, ou o ballet…
Em décimo lugar, é merecedor de registo o elevado nível
de enlouquecimento coletivo dos europeus (a Ocidente e a Oriente) também
quanto aos seus interesses materiais diretos, bem como o abjeto
servilismo dos mesmos face aos EUA. Tal como Michael Hudson há muito
sublinhou, esta é sobretudo uma guerra de separação económica radical da
Europa e da Rússia, criando dificuldades de curto prazo a ambas,
decerto, mas num prazo mais dilatado sobretudo aos europeus, que vão
ficar muito mais ainda nas mãos dos EUA do que até agora (aqui:
thesaker.is/americas-real-adversaries-are-its-european-and-other-allies-the-u-s-aim-is-to-keep-them-from-trading-with-china-and-russia/).
Para usar a expressão do mesmo Hudson, em situação subsequente de
dificuldades para ambas as moedas, o dólar vai rapidamente “devorar o
euro”: resistir.info/m_hudson/dolar_devora_euro.html.
Todavia, décima primeira observação, esta trajetória
deverá acabar por criar problemas também aos próprios EUA, os quais têm
até agora extraído consideráveis vantagens de senhoriagem da posição
obviamente privilegiada em que encontram, desde que Nixon, há 50 anos,
suprimiu a convertibilidade dólar-ouro. Em síntese, só mesmo um país
cuja moeda goze das vantagens de senhoriagem que o dólar possui pode
continuar a ter simultaneamente um enorme défice orçamental e um brutal
défice externo, sem que isso conduza rapidamente à sua ruína. E tal
acontece, em essência, porque a procura de dólares continua a ser
alimentada, em todo o mundo, pela necessidade de usá-los para
transacionar um certo número de produtos essenciais, em particular
petróleo. São estes fluxos que fundamentalmente seguram o dólar como
‘super-moeda’ mundial. Em paralelo, claro, os EUA transformaram-se
também em ‘protetor’ ou ‘padrinho militar’ dos produtores de petróleo do
Médio Oriente, embora se trate aqui, de facto, de racketeering,
ou duma variedade de ‘serviço’ típico dos famosos Sopranos… Mas isso é
conversa mais longa. O importante é que, mesmo sem o reequilíbrio das
suas exportações assim parcialmente adquirido, os EUA podem permanecer
indefinidamente deficitários, o resto do mundo continuando
implicitamente a comprar dívida norte-americana, na medida em que o
dólar continue a operar como ‘super-moeda’.
Entretanto, décimo segundo, a prática repetida das
chamadas “sanções” (configurando uma completa ilegalidade, um total
desrespeito pelo direito internacional, o equivalente do sitiar da
cidades nas guerras medievais para as forçar pela fome a render-se, como
repetidamente notado por vários autores, entre outro o famoso jurista
Alfred de Zayas), o correspondente abuso grosseiro, pelos EUA, das
vantagens que lhes são dadas pela sua posição excecional, tem induzido
vários agentes económicos à escala global a procurar alternativas. A
verdade, porém, é que se tem ‘empastelado’ muito nessa matéria. Todavia,
aparentemente não mais, depois da recente vaga das chamadas sanctions from Hell
que o Ocidente Coletivo quis (como intenção criminosa, claramente
genocida e oficialmente declarada) impor a toda a sociedade russa.
Decididamente, não mais. As alternativas estão a chegar: desta vez,
podemos estar certos disso, é mesmo para levar muito a sério. Também
quanto a isto a Rússia terá demorado a reagir (e o resto dos BRICS ainda
mais), mas também quanto a isto se poderá decerto aplicar o princípio
do “não perdes pela demora”… O novo mundo económico e financeiro
incluirá a indexação do rublo ao ouro, ao gás e/ou a outros recursos
naturais, bem como tentativas de construção duma moeda-cabaz alternativa
ao dólar, para o comércio internacional entre países exteriores ao
Ocidente Coletivo. Tudo isto tenderá, previsivelmente, a criar pressões
deflacionistas na Rússia e inflacionistas (talvez mesmo de
hiperinflação) a Ocidente. Pode ir-se conjeturando, quanto a isso, na
linha desta entrevista: resistir.info/p_escobar/glazyev_14abr22.html.
Décima terceira observação, o grotesco congelamento dos
créditos russos pelos EUA e pela UE obriga imediatamente ao refazer dos
contratos Rússia-Europa, passando os pagamentos desta a serem feitos em
rublos. Não há nisso qualquer ‘retaliação’ russa, sublinhe-se, mas
apenas sensatez elementar. Se a Rússia vende um bem e o seu comprador
reconhece o crédito russo (em dólares ou euros), mas ato contínuo o
‘congela’, isso significa evidentemente que o comprador está a proceder
de má-fé, pretendendo continuar a consumir, na prática, à borla. Ora,
como devia ser evidente para quem não estivesse totalmente ensandecido, a
Rússia pode não desejar mal ao Ocidente, mas não tem inclinação para se
constituir em instituição caritativa de que aquele fosse o
beneficiário. Sendo assim, doravante (depois das famosas “sanções” que
são, de facto, um enorme tiro no pé dos europeus…), ou há pagamentos em
rublos, ou fecho da torneira. A Europa pode, em alternativa, vir a
consumir gás liquefeito transportado por navios transatlânticos,
proveniente dos EUA, produzido por fracking em circunstâncias
ambientalmente mais agressivas e muito mais caro? Lá isso pode, embora
seja coisa para ainda demorar. E, pelos vistos, os dirigentes europeus
querem tão bem às suas populações que é mesmo para aí que nos
encaminhamos…
Décima quarta observação: este facto, só por si,
evidencia bem que na Europa (Ocidental e Oriental), onde se tornou
oficialmente objeto de escárnio público e de vergonha ser-se patriota,
ou “nacionalista”, é todavia um imperativo absoluto ser
‘patriota-dos-EUA’, aceitando colocar os interesses dos EUA (tal como
definidos pelo governo daqueles) à frente dos interesses do país de cada
um; e obviamente à frente também dos interesses de cada um. Os
europeus, pode dizer-se, deixaram de reconhecer uma qualquer Pátria
(terra do pai), ou ‘Mátria’, mas foram e são educados (por todo um
universo mental que vai de Hollywood à Comissão Europeia) a reconhecer
espontaneamente uma ‘Fília’: uma Tochterland, terra-filha, ou
terra dos nossos ‘filhos simbólicos’ que seriam os norte-americanos. Se
necessário, cada europeu (que deixou entretanto de ter Pátria, a favor
da UE e de Bruxelas) deve sacrificar-se em tudo o que for necessário a
favor da Tochterland, ou seja, dos EUA. É Bruxelas que o impõe. E
o patriotismo-por-transferência dos europeus para com aquela é, pelo
seu lado, obviamente transitivo para Washington. Isto permite tudo o que
o patriotismo ‘clássico’ permitia: da censura da cadeia televisiva Russia Today
à compra forçada de combustíveis mais caros, passando por mais despesas
na aquisição de material militar norte-americano e (preparemo-nos)
reintrodução do serviço militar obrigatório, com monitorização direta
pelos militares EUA e, no fim da linha, ‘juramento de bandeira’ dos
recrutas às Stars and Stripes, com música de fundo do John Philip Sousa…
Em décimo quinto lugar (e agora fora de brincadeiras),
destaque-se que quem continua a ver nisto tudo sinal da “loucura de
Putin”, que o teria levado a reatar com a tradição de “imperialismo
russo” remontando ao tempo dos czares – decididamente não percebeu mesmo
nada. E continua a ler a situação completamente ao contrário do que
devia. Relativamente à vida política na Rússia, deve sublinhar-se que
existe neste país, quando comparado com os EUA, um muito maior
pluralismo político efetivo. Putin, ao contrário de Biden, defronta
oposições políticas muito reais, oposições substantivamente muito
diversas em orientação ideológica-programática do seu partido, a Rússia
Unida, o qual corresponde a uma espécie de Gaullismo à russa. Esta
formação partidária dispõe duma larga maioria na Duma, onde defronta
basicamente o PC da Federação Russa, o partido da Rússia Justa (mapeável
algures entre os dois anteriores) e os nacionalistas conservadores do
chamado Partido Liberal de Vladimir Jirinovski. Os neoliberais
pró-ocidentais à la Navalny, que os há também, são basicamente uma
insignificância neste panorama. Pois bem, nesta Duma, onde o partido de
Putin tem maioria absoluta, foram em Fevereiro debatidas duas teses
quanto ao possível reconhecimento oficial das repúblicas do Donbass: a
primeira, mais ‘suave’, fazia o assunto correr primeiro pelo governo; a
segunda, mais ‘dura’, deixava a Putin margem para o reconhecimento
oficial imediato das repúblicas secessionistas. O partido de Putin era
mais ‘suave’ na linha sugerida, o PC mais ‘duro’ e rápido na reação
proposta. Pois bem, apesar da maioria da Rússia Unida, a verdade é que
ganhou na Duma a ‘linha dura’; isto é, a proposta do PC russo. O que diz
muito do estado de espírito geral da população russa, no contexto do
qual (e muito ao contrário do que é propalado no Ocidente), Putin é,
também ele, predominantemente percebido como um político ‘pomba’. Ver,
quanto a isto, o artigo de Gilbert Doctorow: original.antiwar.com/gilbert_doctorow/2022/02/16/meet-the-new-proactive-russia-the-kremlin-moves-on-to-plan-b/
Décimo sexto, deve admitir-se que este grupo de questões
fica, de certo modo, mapeado confrontando a posição do PC da Federação
Russa com a do PC grego. Resumidamente, enquanto este último optou por
uma posição de “nem-nem” (nem NATO nem intervenção militar russa), o PC
russo contrapôs que autodeterminação do povo ucraniano sim senhor, mas,
desde logo, como pode essa tal autodeterminação dos ucranianos
exercer-se nas condições resultantes do golpe de 2014 e da completa
infestação da Ucrânia por grupos neonazis? Primeiro terá, portanto, de
vir a operação de desnazificação. E, ainda em matéria de
autodeterminações, faz sentido pensar na secessão da Ucrânia não apenas
das duas repúblicas do Donbass, mas em boa verdade de toda a chamada
Novorrússia, aproximadamente os 2/5 sudeste do território. A Ucrânia
coloca ou sugere questões sem dúvida muito mais amplas ainda, mas
recorde-se aqui pelo menos, quanto a isso: a) o país tem, ainda hoje,
um PIB per capita que continua a ser só metade do que era em 1991,
aquando da dissolução da URSS, estando longe de completar o enorme U que
foi a trajetória económica da maior parte das ex-repúblicas soviéticas;
b) a esperança média de vida afundou-se drasticamente e ainda não
recuperou; c) perto de 10 milhões de ucranianos abandonaram o país,
quer para Ocidente quer para a Rússia; d) a autoridade do estado, já
muito ameaçada antes pelo domínio dos oligarcas (maioritariamente
enfeudados por sua vez ao Ocidente), colapsou completamente depois do
golpe de 2014. Admitamo-lo: a Ucrânia é basicamente um imenso território
Mad Max, controlado por oligarcas/senhores-da-guerra e milícias
nazis. O possível exercício da autodeterminação pelos 2/5 sul-orientais
pode ser pensado como a operação de salvamento daquela gente e daquele
território – embora, reconhecidamente, mesmo isso deixe de lado a
questão da desnazificação e neutralização militar dos 3/5 centrais e
norte-ocidentais.
Décimo sétimo, há antecedentes vários de intervenções
militares, às quais a história portuguesa esteve aliás diretamente
ligada, que podem contribuir para nos ajudar (por analogia apenas,
evidentemente) a tentar compreender a presente situação. Desde logo, o
caso de Goa, Damão e Diu, invadidas pela União Indiana em 1961, em
aparente violação da carta da ONU, ainda antes das deliberações
anticoloniais desta na década de 1960. Nessa altura Portugal levou o
caso à ONU, e a cabeça da União Indiana, pode dizer-se, só foi tirada do
cepo pelo veto soviético no Conselho de Segurança. Ainda assim, a
decisão “temerária”, “agressiva” e mesmo “imperialista” de Nehru
apressou uma descolonização que, feita ‘como devia ser’, nunca mais
aconteceria no “Estado da Índia” – e desencadeou mesmo um movimento mais
amplo, que se prolongou a seguir para o início das sublevações
anticoloniais nos atuais PALOPs. Vale a pena perguntar: alguém discute
ainda, hoje em dia, a legalidade da decisão indiana? Alguém se queixa do
“novo Hitler” que, segundo a propaganda portuguesa de então, seria
Nehru? Salazar, recorde-se igualmente, ordenou então, ‘à la Batalhão
Azov’, um combate até ao último homem – mas não foi obedecido, o
comandante militar português de então escolhendo uma via ‘à la von
Paulus’, que evidentemente salvou muitas vidas portuguesas mas lhe
valeu, na altura, uma exautoração e uma humilhação públicas ‘à la
Dreyfus’… Toda a oposição portuguesa de então (da semi-oposição ou
quase-oposição católica até aos republicanos, Cunha Leal e António
Sérgio incluídos), com a óbvia exceção do ilegal PCP, foi na altura
beijar publicamente o traseiro de Salazar, protestando sinceramente
patriotismo e lealdade. É obviamente impossível não pensar nisto, a
poucos dias do “Big Show Zelensky” na AR portuguesa -- e também,
acrescente-se, a poucos dias do 48º aniversário do 25 de Abril…
Décimo oitavo, a história portuguesa pode e deve, no
momento presente, ser trazida à colação não só por causa do assunto
Estado da Índia (deliberação oficial de lutar até ao último homem), mas
também pelo caso de Timor-Leste, onde se assistiu, em finais de 1975, a
uma reação portuguesa diametralmente oposta à de 1961, mas então face à
invasão indonésia (que recebera prévia ‘luz verde’ de Henry Kissinger).
Recorde-se que Portugal, neste outro caso, não somente se comportou com
suprema mansidão aquando da invasão, como meteu completamente ‘a viola
no saco’ quanto ao assunto em todas as instâncias internacionais, só se
interessando de novo pelo tema de Timor-Leste quando muito pressionado
pela opinião pública internacional, já nos anos de 1990. Estas duas
reações ‘simétricas’ de Portugal devem ainda ser complementadas pela
consideração da atitude portuguesa em 1999, a respeito do Kosovo, sendo
então primeiro-ministro António Guterres e apoiando Portugal a
intervenção da NATO, e pelo reconhecimento subsequente do Kosovo como
estado soberano. E enfim (but not the least…), pela memória da
infame ‘Cimeira dos Açores’ de 2003, ligando para sempre o nome de
Portugal à criminosa chacina do povo iraquiano, quer pelo nome
primeiro-ministro de então, Durão Barroso, quer pelo próprio território,
assim (ai de nós) tornado tristemente célebre de forma indelével…
Chamemos a tudo isso “alimentação para o pensamento” – e tratemos de
confrontar esses casos com a reação presente da República Portuguesa.
Décimo nono, nem todas as intervenções militares são
necessariamente más, mesmo as que ocorrerem contra os interesses dos EUA
– aliás, sobretudo essas. E menos ainda quando se prolonga
infindavelmente a série das intervenções bélicas por parte dos próprios
EUA: Jugoslávia, Somália, Iraque, Afeganistão, Líbia, Síria, Iémen,
Ucrânia... As respostas ‘simétricas’ não podem, neste panorama global,
ser alvo de condenação. Não é justo nem sensato proceder assim. A
intervenção russa na Síria, por exemplo, será “imperialista”? Ou é antes
a resposta adequada ao apelo legítimo dum governo igualmente legítimo,
dum país que pretende continuar independente? Será agressivo e
condenável a Síria tentar retomar o terço nordeste do seu território,
hoje ocupado pelos EUA a pretexto do combate ao ISIS, mas com o
propósito descarado de roubar petróleo? E, já agora, alguém se lembrará
de condenar essa agressão/ocupação militar norte-americana na AR
portuguesa? Mas consideremos mesmo casos em que a intervenção militar
foi contrária aos apelos dos governos então reconhecidos. Como se
separou o Bangladesh, então Paquistão Oriental, do Paquistão? Graças em
parte a uma intervenção militar da União Indiana. Como se libertou o
Camboja do domínio dos Khmers Vermelhos? Graças a uma invasão pelas
tropas do Vietname. Condenaremos estas intervenções/invasões indiana e
vietnamita? Apesar de feridas de inegáveis aspetos de ilegalidade,
reprovaremos estas outras “operações especiais”? Condenaremos outrossim a
invasão/libertação indiana de Goa? É claro, repito, que se deve ter
muito cuidado no uso historiográfico das analogias. Finalmente, “cada
caso é um caso”, como se diz. Mas vale a pena, parece-me, meditar
aqueles exemplos, tanto mais quanto é evidente estar o nosso mundo a
mudar muito depressa, e parecendo definitivamente ultrapassadas as três
décadas de ‘unipolaridade norte-americana’ imediatamente subsequentes ao
final da Guerra Fria.
Vigésimo, e último. Quanto a isso, deve também considerar-se o que lucidamente escreve Dayan Jayatilleka (aqui: www.resistir.info/russia/guerra_justa.html),
e antes de mais a questão fundamental que ele nos deixa: qual a
Rússia que merece verdadeiramente ser recordada pelo resto-do-mundo ou
pelo Sul Global com nostalgia? A Rússia Imperial pré-1917? Decerto que
não. Mas outro galo cantará, certamente, se pensarmos na Rússia
soviética que, depois de esperar e desesperar pela Europa (que nunca
mais se lhe juntava, nem juntou alguma vez, na mítica revolução
proletária dos países “mais desenvolvidos”), decidiu virar-se em vez
disso para sudeste, apelando aos “escravos das colónias” e levantando
com isso a chama e a bandeira da libertação do Vasto Mundo do domínio do
Ocidente. A história não se repete, claro; mas, como por vezes também
se acrescenta, frequentemente rima. É sobretudo adentro desse quadro
global, de disputa do domínio do “Rest” pelo “West”, que em minha
opinião a Rússia pode talvez ainda ‘reformatar-se’ de forma decisiva, e
inquestionavelmente para melhor. E é nesse âmbito que a “Operação Z”
deve pois ser julgada.