in jornal Público com a devida vénia
Ser viúva do Fernando Pessoa
Não é uma desonra ser viúva do Fernando Pessoa, mas, e mesmo em tempos de guerra, todos têm o direito a ser tratados e recordados por aquilo que são.
Terá sido a Pilar del Rio, mas o presidente do Eurogrupo, Paschal Donohoe, contou a Fernando Medina que, aquando da sua última visita a Portugal, conheceu a viúva de Fernando Pessoa num dia que classificou como fantástico.
Não é indesculpável a confusão: estão em causa dois grandes escritores. Confundir José Saramago com Fernando Pessoa não envergonha a memória de nenhum dos dois. As percepções funcionam exatamente assim. Fazem-se associações que até têm a sua lógica mas que levam a terríveis enganos. São os enganos que ficam e que persistem na memória, são reproduzidos e muitas vezes eternizados.
Dura desde que começou a invasão da Ucrânia.
Vivemos num procedimento. E há dois lados: o de quem segue o procedimento condenando a invasão, diabolizando as tropas russas, denunciando o cometimento de atrocidades e glorificando a integridade e a resistência ucranianas; e há o outro lado, o dos restantes. Os restantes podem ser muitas coisas, mas não vale a pena ser exaustivo a elencá-las. Porque os restantes são todos aqueles que não seguem na íntegra o procedimento. Há quem integre o grupo contra a sua própria vontade. Azar o destes. Se falarem de paz é certo que terão um lugar garantido.
Existe uma tensão entre os dois lados mas é sobretudo uma tensão sentida pelo primeiro relativamente ao segundo. A questão moral supostamente subjacente superioriza os seguidores do procedimento.
Quando existe uma discussão, o primeiro lado costuma apresentar como argumento imagens chocantes que mostram crueldade ou números/dados que apontam no mesmo sentido. Também os mais acérrimos defensores do segundo lado (não os que lá estão contra a sua vontade) o fazem.
Este é um tema. Quem estuda estas práticas chama-lhes propaganda de atrocidades. Trata-se da divulgação dos crimes cometidos pelo inimigo numa guerra.
A resistência coletiva à aceitação de uma guerra é muita e a única maneira de a vencer é reforçar a ideia da existência de um agressor e de uma vítima, e erradicar assim a ambiguidade relativamente a quem devem as pessoas odiar.
Viver tempos de guerra implica assistir à disseminação de propaganda, também propaganda deste tipo. No último artigo disse que, numa fase inicial (ou seja, enquanto dura um conflito), apenas o jornalismo pode proteger as pessoas da propaganda. Também disse que algumas não querem ser protegidas. É claro que através do jornalismo podem chegar-nos imagens de atrocidades, mas o objetivo do jornalismo é informar. O jornalismo não junta atrocidades a argumentos. Não quer convencer ninguém de coisa nenhuma.
A propaganda de atrocidades é eficaz a cumprir os seus objetivos, mas é eventualmente perigosa na medida em que potencia e aumenta exponencialmente o ódio de quem assiste a um conflito e até o de quem está nos campos de batalha. Os meios de comunicação atuais assim o permitem. Esta propaganda, como um eucalipto, seca tudo à sua volta. Só fica a raiva, o medo, a revolta. Péssimos conselheiros para o bom senso. Uma forma de garantir o estado de guerra.
Por outro lado, ela é aditiva. Interfere com a curiosidade mórbida mas também com sentimentos de bondade que, felizmente, as pessoas têm. Cria-se uma ligação muito forte com as vítimas e um espírito de grupo entre quem partilha esses sentimentos. Inversamente, em simultâneo, cresce uma animosidade por todos aqueles que são identificados como não pertencentes ao grupo.
Somos todos bastante padronizados e aqui não se abriu uma exceção. Esta simplificação da realidade presta-se a grandes equívocos. As pessoas são acusadas de posições que não têm e de serem o que não são. O clima de guerra ajuda e desculpabiliza essa prática.
Não é uma desonra ser viúva do Fernando Pessoa, mas, e mesmo em tempos de guerra, todos têm o direito a ser tratados e recordados por aquilo que são. Cada um deve assumir responsabilidades por aquilo que diz, e escreve, mas tem de ficar claro que não tem qualquer responsabilidade no entendimento que os outros têm do que diz ou escreve.
Como escreveu Leonardo Sakamoto: “Falta amor no mundo, mas também falta interpretação de texto.”
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico
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