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segunda-feira, 18 de abril de 2022

 

Carlos Matos Gomes

Apr 16

4 min read

A vitória dos dogmáticos sobre os céticos

Vivemos tempos em que tudo é velho, havendo quem nos queira fazer crer que vivemos novos tempos. A única novidade neste tempo de conflitos é a apresentação de velhos números como situações novas por pessoas que tinham o dever cívico de saberem que eles são velhos. Chama-se (chamava-se?) sabedoria a essa atividade intelectual de iluminar falsas novidades.

Os intelectuais, os anciãos, os filósofos desempenhavam tradicionalmente o papel de decifradores e de apaziguadores. Se repararmos na literatura da antiguidade e nas histórias orais dos povos que não têm língua escrita, os sábios raramente interpretam os acontecimentos em termos de moral, mas buscam explicações e as suas explicações assentam num sistema binário que procura respostas através de dogmas ou de dúvidas.

A interpretação dos acontecimentos tem sido feita ao longo da história da humanidade através da disputa entre argumentos dogmáticos e céticos. Tal como hoje.

O conflito na Ucrânia, como os anteriores, na Sérvia, no Kosovo, no Iraque, na Síria, na Palestina, trouxe à superfície de novo a vitória dos dogmáticos sobre os céticos. Os dogmáticos ganharam todas as guerras modernas antes de elas começarem e a sua vitória foi explorada enquanto elas produziram lucro. Os céticos, os que colocam dúvidas sobre as causas das guerras, começaram por ser traidores, amorais, insensíveis, hereges. Passados anos, os dogmáticos tornaram-se sensatos homens de negócios, opinadores venerados e os céticos lamentam não terem sido escutados, deles se diz que nunca estão bem, que vêm tudo a negro. Dois bons exemplos nacionais do êxito de dogmáticos e do seu esclarecimento são Durão Barroso e Paulo Portas, no estrangeiro teremos Toy Blair.

O termo ‘dogma’, é comumente traduzido por “crença” (Sexto Empírico define-o como “assentimento a algo não-evidente”). Evidente é a primeira palavra-munição do dogmático. Os dogmáticos repetem vezes sem conta: “é evidente; é obvio!” Coisas evidentes são coisas que vêm ao nosso conhecimento por elas mesmas, que são apreendidas a partir delas mesmas, que se apresentam elas mesmas aos sentidos, que não exigem nenhuma outra coisa para se anunciarem. São de conhecimento imediato e sem reflexão, apreendemo-las diretamente a partir de uma impressão: “tenho a certeza de que….” Garantem. Ou: “ora vamos lá a ver…”

O filósofo romano Sexto Empírico (curioso nome) declara que essa espécie de coisas, o “não evidente”, só poderia ser posta em dúvida pela crítica dos céticos, porque para um dogmático a verdade é uma ferramenta como um canivete suíço: pode ter múltiplas formas e funções, adaptadas às necessidades doo momento. Consequentemente, toda asserção sobre as tais coisas evidentes será um dogma, e o dogmático recusa argumentar racionalmente com o cético, pois isso revelaria que aceita a dúvida. Renegaria a sua fé!

As televisões são hoje uma grande ordem dogmática, que substituíram o Santo Ofício. Inácio de Loyola e Torquemada são hoje os gurus dos gabinetes de comunicação, dos diretores de informação.

Os dogmáticos vencedores inquestionáveis de mais esta guerra de ação psicológica e de manipulação impuseram a sua verdade escondendo que chegaram a ela através de um dogma, de uma opinião apriorística, de uma crença, de uma adesão emocional, ou crença, abdicando e até verberando os que utilizam argumentos retirados de existência real, que se opõem à aparência. Parece-me feliz a afirmação de David Hume, um filósofo inglês citado pelos professores Schofield / Burnyeat / Barnes em Doubt and Dogmatism, da universidade de Oxford: «Em síntese, os dogmáticos são simplesmente “crentes”, são aqueles que creem em coisas não aparentes, ou modernamente, em “coisas em si”.»

O dogma de hoje é que um diabo pequenino e careca acordou em Moscovo em 24 de Fevereiro e declarou: Vou mandar a Ucrânia para a fogueira. Eles são bons e não podem dar bons exemplos aos meus demónios!

O dogmáticos passaram a ser os arcanjos que transmitem esta verdade e os céticos foram declarados inimigos das grandes instituições de bombardeamento dogmático: — Ou crês ou morres!

Os céticos separaram crença do conhecimento, logo são os aliados do Diabo.

Esta é a essência da narrativa dogmática a que estamos sujeitos !

Para as grandes instituições dogmáticas, as centrais produtoras de “evidências”, o ceticismo é o alvo a abater porque exige provas e conhecimento em vez de crenças. Os céticos pretendem fundamentar as explicações e não satisfazer-se com o rudimentar e ingénuo pensamento da inexistência de causas para os efeitos. Heresia!

Os céticos são uma espécie a abater. A grande estrela do dogmatismo que emergiu deste conflito é Zelenski. Ouviremos o seu sermão aos lusitanos na Assembleia da República dentro em breve, no dia 21 de Abril, para confirmar os seus dotes de pregador missionário, de profeta.

No final da videopregação os crentes no dogma (que os há), e os que não têm coragem da criança que gritou que o rei ia nu, levantar-se-ão para aplaudir. São os nossos representantes oficiais!

A ironia suprema seria o programa terminar com a frase das transmissões televisivas: Este programa foi-lhe oferecido pela Netflix!

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