Greg Godels
Lenine ironicamente nota a tendência reformista pequeno-burguesa de separar o imperialismo do capitalismo, de negar “o vínculo indissolúvel entre o imperialismo e os trusts e, portanto, entre o imperialismo e os próprios fundamentos do capitalismo…” Sem reconhecer o capitalismo como a fonte do imperialismo e da guerra, o anti-imperialismo continua a ser “um desejo piedoso'”
A obra de V.I.Lenine, Imperialismo, continua a ser a principal elaboração do conceito de imperialismo para os marxistas. É o ponto de partida para qualquer discussão sobre a dinâmica global do capitalismo desde o final do século XIX até hoje.
Embora o capitalismo tenha dado voltas, reviravoltas e até sofrido desvios desde a época de Lenine, o objetivo permanece o mesmo – a exploração do trabalho com fins lucrativos, onde quer que trabalhadores e recursos possam ser encontrados. A evolução, concentração, crescimento e desenvolvimento desigual do capitalismo são as condições necessárias para o imperialismo. O imperialismo não respeita fronteiras sociais ou políticas.
A obra Imperialismo, capta as características do capitalismo moderno – monopolista. No entanto, muitos, aparentemente, não conseguem ler o subtítulo de Lenine: A fase superior do capitalismo (International Publishers, 2004). Não conseguem entender que Lenine está a escrever, a elaborar, a explicar uma fase particular do capitalismo, e não a atribuir características a Estados individuais. Está a descrever um período historicamente limitado, um período em que o capital na sua forma madura, financeiramente organizada e monopolista passa a dominar o mundo inteiro através das conquistas das “grandes potências”. Nas palavras de Lenine:
… devemos dizer que o traço característico desse período [o imperialismo] é a divisão final do globo – não no sentido de que uma nova divisão é impossível – pelo contrário, novas divisões são possíveis e inevitáveis – mas no sentido de que a a política colonial dos países capitalistas completou a tomada dos territórios desocupados do nosso planeta... no futuro só é possível a redivisão... (p. 76)
Como o método de Marx exige, Lenine está a abordar processos, tendências – neste caso, uma tendência do capital não apenas para dominar Estados-nação, até regiões, mas o mundo inteiro. É o completar ou redividir que define o imperialismo como uma era histórica, um processo que – por meio da concorrência – cria alianças e blocos em constante mudança. Em última análise, é a intensa competição transportada para além das fronteiras nacionais que pode acabar por ser resolvida com as armas, pelas guerras.
Esses processos que Lenine associa ao imperialismo ocorrem de forma desigual e de diferentes formas. Após a revolução bolchevique, a dominação do capitalismo monopolista de todo o mundo foi interrompida pela existência da União Soviética. Seguiu-se uma cruzada anticomunista por parte das grandes potências capitalistas, mas o processo subjacente permaneceu o mesmo: entregar cada trabalhador e camponês nos braços do capital monopolista e financeiro.
Mais uma vez, após a Segunda Guerra Mundial, o crescente poder e a influência de uma comunidade socialista foram decisivos na libertação de quase todas as que antes eram colónias das grandes potências. Novos países “independentes” surgiram na Ásia e na África. Mas a tendência subjacente identificada por Lenine expressou-se novamente através de uma nova expressão do imperialismo: o neocolonialismo.
O neocolonialismo manteve as antigas vantagens económicas para as grandes potências dominantes, mas sem o ónus da ocupação e administração. “Esferas de influência”, um termo mais benigno cunhado no século XIX, captou a tendência do capital de penetrar em todos os cantos do mundo, enquanto mascarava a subjugação crua implícita nas “colónias”. Assim nasceu uma “independência” dependente, cimentada mais pela necessidade económica do que pela coerção nua.
Com a queda da União Soviética, o andaime económico mais viável para o desenvolvimento independente fora do sistema imperialista foi eliminado. Comentaristas ocidentais celebraram vigorosamente a perspetiva de penetração capitalista desimpedida em todos os países, sem exceção. Enormes mercados de trabalho entraram no sistema capitalista da Europa Oriental e da Ásia, reduzindo drasticamente os custos de bens, serviços e, mais importante, mão de obra.
O capitalismo ganhou um segundo fôlego, desfrutando de taxas de crescimento e lucro mais altas e mais estáveis.
Os capitalistas correram a abrir novos mercados, remover impedimentos ao comércio, acelerar investimentos estrangeiros, garantir a reciprocidade de uma maneira nunca vista desde as primeiras décadas do imperialismo moderno. De facto, as últimas décadas do século XX assemelharam-se àquele período anterior do imperialismo clássico para muitos marxistas.
Ironicamente, o triunfalismo capitalista serviu para sublinhar a atualidade da teoria do imperialismo de Lenine. Mais uma vez, a economia global foi dominada pela mobilização das grandes potências, à procura de vantagens económicas (exploração) e esferas de influência.
Com os EUA, tal como a Grã-Bretanha na sua glória do século XIX, reivindicando o direito de determinar os termos da atividade económica e do comércio para o mundo, previa-se um período de cooperação e paz. Nessa visão, os vínculos económicos capitalistas e a dependência mútua serviriam para cimentar as relações sociais e políticas e assegurar a estabilidade nas relações internacionais. Uma nova ordem mundial seria bem-vinda por todos e garantida pelos EUA.
Aqueles poucos no Ocidente familiarizados com o revisionismo marxista do início do século XX notaram que essa ficção era notavelmente semelhante à teoria do “ultraimperialismo” de Karl Kautsky, uma teoria segundo a qual as grandes potências dividiriam o mundo e resolveriam a questão entre si sem atrito ou conflito.
Lenine, muito antes, troçou dessa ideia. Quando escreveu o Imperialismo, em 1916, ele viu a catástrofe da Primeira Guerra Mundial como a refutação decisiva da ideia de imperialismo estável ou equilíbrio imperialista. A maior parte da esquerda ocidental não comunista, alienada do leninismo e cega aos paralelos históricos, lutou para dar sentido à “nova” era pós-soviética, falhando em conectá-la com o imperialismo clássico descrito por Lenine e seus adeptos. Sem uma teoria, eles cunharam enigmaticamente o termo vazio “globalização” para descrever as réplicas do capital monopolista.
As teorias pós-marxistas, pós-fordistas e pós-modernistas abundavam. Alguns “marxistas” académicos pensaram que o final do século XX inaugurou uma era de enfraquecimento do Estado-nação. Outros pensavam que estávamos a ver a ascensão de um supra-estado, o Império, uma entidade totalizadora surgindo no mundo como um invasor alienígena.
A celebração do triunfalismo capitalista terminou abruptamente com o retorno de guerras constantes e quase intermináveis e frequentes crises políticas e económicas. Juntamente com a saída do imperialismo “benigno”, as fantasias teóricas de esquerda desvaneceram-se.
O comércio global contraiu-se após a crise de 2007-2009 e as tensões entre os países capitalistas aumentaram na determinação de quem ganharia e quem arcaria com o ónus de uma economia global lenta ou estagnada.
As forças centrífugas na UE dividem a UE de norte a sul. A Alemanha domina as políticas da UE, impondo austeridade de tamanho único a diversos Estados desigualmente desenvolvidos.
A impressionante entrada da República Popular da China na economia capitalista global e o notável crescimento subsequente ameaçam a hegemonia dos EUA, criando concorrência e tensões.
Os EUA têm procurado reprimir o desenvolvimento independente fora das hierarquias globais, usando substitutos, guerra por outros meios: sanções, boicotes e tarifas. E com uma resistência extremamente obstinada, os EUA utilizam o seu aparelho de estimular golpes ou enviam as suas tropas para apascentar aqueles que ousam escapar do redil imperialista construído pelos EUA.
“Novas” grandes potências substituíram ou mudaram de lugar com o alinhamento ativo do tempo de Lenine. A UE, apesar das diferenças entre os seus membros, delineou uma agenda imperialista sob a batuta americana da NATO, como o testemunham a sua participação no desmantelamento da Jugoslávia e as suas guerras no Afeganistão, Iraque, Líbia e Síria.
A Arábia Saudita, impregnada de petrodólares, procura impor a sua influência sobre os vizinhos, atitude demonstrada mais recentemente pela sua sangrenta guerra no Iémen. Até mesmo o minúsculo Israel participa na disputa imperialista ao anexar territórios dos seus vizinhos e do povo palestiniano.
Onde há capitalismo, há uma procura por território, recursos, trabalho ou influência. Como na época de Lenine, os países coabitam nesse caldeirão caótico e instável de diferentes maneiras – às vezes como potências maiores, outras vezes como potências menores ou então como vítimas. A concorrência - promoção ou proteção de interesses económicos – agita esse caldeirão.
No Imperialismo, Lenine não identifica os países como “imperialistas”, sem uma qualificação. Isso violaria o seu firme reconhecimento do desenvolvimento desigual. No capítulo VI, “A divisão do mundo entre as grandes potências”, ele identifica simplesmente os países (os seis grandes!) que foram mais ativos, entre 1876 e 1914, na aquisição de colónias.
Pode fazer-se a interpretação de que ele estabelecia uma hierarquia imperialista, mas isso também não é correto. Lenine, sempre atento às contingências históricas e às forças sociais em mudança chega, de certo modo, a descrever a variedade dentro das “grandes potências”:
… ainda permanecem grandes diferenças; e entre as seis potências, vemos, em primeiro lugar, as potências capitalistas jovens (América, Alemanha, Japão) que progrediram muito rapidamente; em segundo lugar, países com um desenvolvimento capitalista já antigo (França e Grã-Bretanha)... e, em terceiro lugar, um país (Rússia) economicamente mais atrasado, no qual o imperialismo capitalista moderno está enredado, por assim dizer, numa rede particularmente estreita de relações pré-capitalistas. (p.81) [Sublinhado GG]
Lenine não deixa dúvidas de que um país (Rússia czarista) pode ser um grande participante na disputa imperialista por colónias (ou esferas de influência) enquanto permanece como um país capitalista menos robusto com restos de formações económicas anteriores e sinais ou características de futuras formações (não capitalistas). Por outras palavras, o seu lugar no sistema imperialista não é estritamente determinado pelo seu lugar na hierarquia capitalista – esse país pode ser uma brilhante jovem estrela capitalista ou uma estrela decadente e velha, agarrada a um passado brilhante, enquanto ainda desempenha um papel decisivo no jogos do império.
Seria errado, como argumentaram alguns, tomar mecanicamente as “cinco características essenciais” de Lenine encontradas no Capítulo VII como um critério para admissão nalgum tipo de clube imperialista. Não poderia ser mais claro que “O imperialismo como uma fase especial do capitalismo” não se refere ao estatuto de países individuais no sistema imperialista, mas ao imperialismo como um todo.
A concentração de capital, a fusão do capital financeiro com o capital industrial, a exportação de capital, os monopólios internacionais e a divisão territorial do mundo (esferas de interesse) são características da fase imperialista do capitalismo, e não necessariamente de qualquer país individual no projeto imperial.
Países – pequenos ou grandes, desenvolvidos ou atrasados, abastados ou empobrecidos – desempenham diferentes papéis em diferentes momentos na marcha do imperialismo.
Seja a Rússia czarista (uma mistura de relações capitalistas emergentes nas áreas urbanas e relações feudais que mal tinham terminado nas áreas rurais) ou a Rússia de Putin (uma economia capitalista industrial atrofiada, mas com enormes recursos essenciais), a capacidade de participar em atividades de grande potência , para ampliar ou proteger esferas de interesse, enfrentar outras grandes potências é uma realidade inquestionável. Esconder essa realidade – essa participação ativa no conflito com outros países capitalistas – por trás da fachada de que a Rússia não atende às “cinco características essenciais” que caracterizam a era imperialista é puro sofisma.
Lenine é claro. Além das “grandes potências” há uma série de países cuja “participação” no sistema imperialista é complexa. A dialética do desenvolvimento desigual não produz tipos ideais.
Lenine fala de atores menores no sistema imperialista que têm relações diversas com o imperialismo. Alguns têm as suas próprias colónias, mas “retêm as suas colónias apenas por causa dos interesses conflituantes, atritos etc., entre as grandes potências...” Correm o risco de perder as suas colónias por uma nova “partilha” colonial entre as grandes potências (página 81).
Ele também reconhece “semi-colónias” como a Pérsia, a China e a Turquia que eram, no seu tempo, nominalmente independentes, mas profundamente exploradas pelas grandes potências. Refere-se-lhes como “exemplos de formas de transição que podem ser encontradas em todas as esferas da natureza e da sociedade”; eles estão “numa fase intermédia” (página 81). Hoje, todos os três fizeram a transição para atores maiores no firmamento capitalista.
Na sua discussão sobre Argentina e Portugal, Lenine antecipa o conceito marxista de “neocolonialismo” surgido em meados do século XX, discutindo como países independentes podem estar vinculados ao nexo imperialista sendo financeiramente dependentes ou sendo protetorados (páginas 85-86).
Assim, Lenine mostra, com grandes nuances, que o imperialismo é um sistema global dinâmico, em constante movimento, e que os países participam no sistema de várias maneiras. Os imperativos do capital monopolista obrigam todos os países capitalistas a procurar vantagens na competição por recursos, mercados e trabalho. Nessa luta, há aqueles que se tornam poderes maiores e dominam os outros pelo exercício do seu poder. As potências menores perdem para os mais poderosos, mas podem aspirar a desafiar, ou exercer o seu poder sobre os menos poderosos. O sistema tende a envolver todas as economias em relações de dominação e dependência. A concorrência gera agressão e guerra.
Lenine ironicamente nota a tendência reformista pequeno-burguesa de separar o imperialismo do capitalismo, de negar “o vínculo indissolúvel entre o imperialismo e os trusts e, portanto, entre o imperialismo e os próprios fundamentos do capitalismo…” Sem reconhecer o capitalismo como a fonte do imperialismo e guerra, o anti-imperialismo continua a ser “um 'desejo piedoso'”.(página 111).
Pode ser útil resumir esta discussão mostrando como uma leitura mais atenta do Imperialismo pode lançar luz sobre o imperialismo do século XXI.
- O imperialismo do século XXI compartilha mais características com o imperialismo do tempo de Lenine do que diferenças.
- O imperialismo constitui um sistema de concorrência global por recursos, mercados e força de trabalho que coloca os países capitalistas uns contra os outros para estabelecer esferas de interesse e um melhor campo de operação para os seus monopólios. A luta instigada pelos EUA pelo domínio da Ucrânia envolve monopólios no setor de energia e na indústria de armas, bem como uma tentativa de garantir e expandir as esferas de interesse existentes. Enquanto os EUA são a grande potência mais poderosa e instigadora, a Rússia é uma aspirante a grande potência levada a invadir um país “em transição” – a Ucrânia. Com sucessivos governos corruptos, a Ucrânia, desde a sua independência, anseia por ser um protetorado de uma grande potência, aquela que oferecer os melhores negócios. Em jogo estão os interesses das várias classes dominantes.
- O argumento popular entre os ocidentais que se dizem de esquerda sobre se a Rússia é um país imperialista ou um país anti-imperialista que se opõe ao imperialismo dos EUA e da UE é um debate estéril e escolástico. De uma perspetiva leninista, a Rússia de hoje, como a Rússia czarista, é um país capitalista nascente que disputa uma posição como força de liderança na disputa por mercados e esferas de interesse. O envolvimento da Rússia num desafio ao imperialismo dos EUA – na Síria, Cuba, Venezuela, etc. – é apenas isso: desafio a um rival. Que rivais poderosos estão a ameaçar agressivamente as ambições da Rússia é visível, mas de pouca influência sobre os interesses da classe trabalhadora russa, ucraniana, americana ou da UE.
- De facto, o “progresso” da guerra na Ucrânia – como uma perspetiva leninista poderia prever – afetou dramaticamente e negativamente o destino dos trabalhadores globalmente. Milhões de vidas foram interrompidas, prejudicadas ou acabadas.
- O fim da União Soviética libertou a mão do imperialismo, produzindo um mundo substancialmente congruente com o imperialismo do início do século XX. Alguns dos atores mudaram ou assumiram papéis diferentes, mas a lógica do imperialismo das grandes potências está intacta. Aqueles de nós que defendem o papel histórico da União Soviética devem dissipar qualquer apego romântico remanescente à Rússia de hoje. Participa do sistema global do imperialismo como uma grande potência.
- Como Lenine adverte, a tentativa de separar o imperialismo das suas raízes capitalistas destina o anti-imperialismo à ineficácia – “reformismo pequeno-burguês”. O anti-imperialismo moralista, o que Lenine chama “o último dos moicanos da democracia burguesa”, desaba no pacifismo – uma postura boa para a alma, mas impotente contra os esquemas das grandes potências. A celebração que hoje fazem muitos dos que se dizem de esquerda de um mundo capitalista “multipolar” projetado é mais uma tentativa de separar as rivalidades das grandes potências das suas raízes nos interesses capitalistas – especificamente, monopolistas. A multipolaridade era uma característica do imperialismo no prelúdio da Primeira Guerra Mundial. De facto, a tentativa de impor a multipolaridade a um mundo sobrecarregado com a dominação do Império Britânico foi um fator crítico que levou à Primeira Guerra Mundial.
- O abandono do leninismo é essencialmente um abandono do socialismo. Fé desesperada e infundada (a) na eficácia da multipolaridade, (b) na esperança de encontrar um ponto de encontro anti-imperialista em torno de um ex-Estado socialista esventrado e devastado agora possuído por mega-bilionários, (c) na transformação milagrosa dos partidos burgueses ocidentais, movidos pelo dinheiro e liderados pela elite, e (d) na crença de que a esquerda fragmentada, egocêntrica, com interesses vários e multi-identitária pode unir-se por magia numa força para mudanças radicais são todos produtos de uma perda de confiança no projeto socialista.
As lições da história e os professores mais brilhantes da história são os melhores guias para o futuro que queremos. Plus ça change, plus c'est la même chose. [Quanto mais muda, mais é a mesma coisa]
Fonte: https://mltoday.com/is-russia-an-imperialist-country-thats-not-the-right-question-to-ask/, publicado e acedido em 04.04.2022
Tradução de TAM
in Pelo Socialismo blog
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