Continuo a utilizar o significado filosófico de Ética enquanto reflexão sobre o fenómeno da Moral. Uso a maiúscula desta última noção filosófica porque existiram diversas morais que já se extinguiram e na atualidade existem diversas morais . A dominância de uma determinada moral num conjunto de países que se regem pelo mesmo modelo económico não significa que este modelo disponha de uma moral idêntica, ou totalmente idêntica : os países orientados pela religião muçulmana prosseguem o modelo capitalista, ou este modo de produção domina anteriores modos de produção, ou elementos novos de um modelo de produção que se poderiam designar como não capitalistas ; contudo, guiam-se por normas e costumes morais que não só são diferentes das normas morais dominantes no chamado Ocidente, como colidem com elas com algum grau de desprezo e hostilidade, na mesma proporção com que são encarados pelo Ocidente. Nesses países e no vasto continente asiático de modo geral, não existe uma moral pura diferente da moral "ocidental", sim normas e novos costumes que coexistem contraditoriamente com normas e culturais opostas próprias da história milenar desses países do Oriente e do Extremo-Oriente.
Nestes parágrafos está explícito ou implícito o seguinte :
1. A historicidade da Moral - nascem e extinguem-se, evoluem adaptando-se ou sendo completamente derrotadas e esquecidas.
2. O fenómeno da Moral é a manifestação concreta, diferenciada e mutável portanto, da essência que é o processo histórico. É este processo que é essencial. Para este processo concorrem as formações económico-sociais que exprimem modos ou modelos de produção material, isto é, modos de produção, distribuição e consumo de bens económicos e culturais, com os quais se criam normas nas relações dos homens entre eles próprios, entre eles e a natureza-ambiente, entre eles e as forças produtivas que eles próprios criam e nas quais eles mesmos constituem uma força produtiva. Transformam as condições de vida e, simultaneamente, dentro desse processo histórico e material, transformam-se a si próprios. A diversidade das normas morais exprimem essas mudanças nos comportamentos individuais e coletivos. O regime de propriedade, a divisão social do trabalho, as formas de distribuição dos produtos do trabalho, as relações sociais referidas anteriormente, condicionam os modos de pensar, de sentir e de agir. Ao lado dessas condições erguem-se religiões que também condicionam fortemente, como sucedeu no passado em todas as sociedades, substituídas modernamente pelas leis, isto é, pelo Direito, pelo menos em grande parte. A religião não se extinguiu, porém pode dizer-se que em determinados países ou comunidades humanas assiste-se a uma "divisão de funções": o medo da morte fica para a religião; as relações sociais ficam para a moral e para as leis.
3. O condicionamento mais essencial do comportamento humano é a natureza, isto é, a sua natureza bio-física. Em grande parte as sociedades humanas cuidam dessa natureza ; foi essa a origem delas. Portanto, a primeira condição ontológica do indivíduo é manter-se vivo. É o que Baruch Espinosa chamou "conatus", auto preservação. O seu desejo é a expressão do seu apetite de viver ontológico ; é com o desejo que lida a moral ; não o desejo sexual apenas. Adquirir poder ou conservá-lo, sobre outros, é desejo igualmente. O desejo de obter lucro, de acumular capital, de convertê-lo em dinheiro, ou obter mais dinheiro por meio de dinheiro, é o desejo mais poderoso da moral contemporânea nas sociedades onde prevalece o modo de produção capitalista, isto é, a produção de valores de troca onde se tecem relações entre proprietários. Contudo, como dizíamos, as normas morais estão condicionadas prioritariamente e originalmente (digo : ontologicamente) pelas condições (exigências e limites) bio-físicas. Contudo, com a criação de de comunidades e suas regras de coesão e conservação, transformaram-se as condições bio-físicas : foi o trabalho, o desenvolvimento das forças de produção, o consumo dos produtos, que transformaram decisivamente os corpos e as mentes desses corpos.
4. Os seres humanos transformaram-se física e moralmente no decurso de centenas de milhares de anos e de diversas experiências sociais ou modelos de organização social. Tudo é submetido ao movimento a que chamamos histórico. Tudo é histórico, até boa parte da natureza na medida em que esta foi moldada pelas sociedades humanas. Porque constatamos que os seres humanos se transformaram e são diferentes conforme a cultura (nela incluindo a moral), tanto rapidamente como ao longo de milhares de anos, é que podemos concluir que é possível organizar novas sociedades e, assim, modificar os seus membros. Essas mudanças (muitas estão a decorrer agora mesmo) podem, no entanto, ser travadas, e os comportamentos e relações sociais regredirem. Não só porque somos corpos físicos com predisposições que pouco ou nada mudaram, mas igualmente porque uma cultura, um regime político, a imposição de determinadas regras morais e jurídicas, podem desenvolver novamente comportamentos primários que julgávamos extintos. O medo do outro, a desconfiança do diferente ou do que não se conhece, vem dos tempos remotos das famílias dispersas em busca dos mesmos alimentos e territórios, chegando, por fim, à criação da propriedade privada, quer fosse ganha pelo esforço do trabalho de uma família ou clã, quer fosse extorquida pelo saque. Biologia e cultura (constituição genética e social) determinam os comportamentos. A moral constitui-se de regras na família e nas comunidades de famílias, até se constituir como normas ou leis que uma classe economicamente dominante impôs às outras e se impôs a si mesma para se regularem os conflitos internos. A moral, tal como os Estados, possuem autonomia relativa face aos determinismos bio-sociais. Sem essa autonomia não poderiam ser legitimados ou exercerem a sua função através da confiança por parte dos membros da sociedades. A força da moral não está tanto nas ameaças de castigos, mas no consentimento. É por isso que, pode suceder, uma profunda alteração de regime político e económico e, todavia, permanecerem restos pesados da moral antiga, ou seja, própria das antigas classes sociais. Regras culturais, morais e legais.
5. Sucede que essa autonomia permite que a moral (ou a cultura de modo geral) exerça influência determinante sobre o regime político e até, por consequência, económico. Constata-se com a religião e as mitologias no passado da humanidade. Constata-se ainda no presente a poderosa influência da moral religiosa, embora quase sempre na atualidade o que determina em última instância são os interesses económicos.
6. De modo geral, e procurando não repetir apenas o que já escrevi anteriormente, a corrente filosófica designada de Materialismo Histórico, é a que melhor explica o fenómeno da moral. Portanto, a Ética materialista é aquela mais conforme os factos que observamos na história das sociedades humanos e nos comportamentos, mais conforme as descobertas científicas consensuais.
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